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Comentário

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Sexta, 30 de Dezembro de 2022, 13h25 | Última atualização em Quinta, 05 de Janeiro de 2023, 20h31

Os censos e a história do Brasil colonial

Tiago Gil
Universidade de Brasília

 

A contagem de pessoas durante o chamado período colonial, entre os séculos XVI e XIX, variou muito e não pode ser pensada em termos de continuidade. Há diversos tipos de listas que poderíamos chamar grosseiramente de censos, ainda que fossem prioritariamente voltadas para a atividade econômica ou a propriedade da terra. No século XIX, contudo, há uma grande proliferação de censos que contavam de modo cada vez mais minucioso, os habitantes de cada país. Houve quem já associasse esse incremento na realização dos censos com o surgimento dos nacionalismos, como uma forma de agrupar os iguais. Como disse o antropólogo Benedict Anderson, o que contariam os censos se não franceses, ingleses, italianos e brasileiros? [1] Não podemos ignorar este alerta, mas o século XIX é também o grande século de proliferação da estatística e cada vez mais os Estados procuram controlar suas populações com o uso da quantificação.[2]

Os parcos indícios que existem para as ocupações litorâneas lusitanas no início da colonização não podem ser comparados aos dados altamente planejados, coletados e estruturados de fins do século XVIII. É certo que já no século XVI temos algumas informações sobre diversas vilas e cidades coloniais. O relato do padre Cardim, feito na década de 1580, nos conta que a Cidade da Bahia tinha mais de três mil vizinhos (termo usado para designar chefe de família), além de oito mil indígenas cristianizados e entre três mil e quatro mil africanos escravizados.[3] Cardim fizera uma descrição de várias outras localidades, indicando populações para a maioria delas. Estas eram, contudo, impressões gerais de alguém que coletara as informações ao passar, fruto, certamente, de uma ideia muito imprecisa de contagem, muito própria da lógica do século XVI.[4]

Há outros tantos cronistas que se dedicaram a enumerar e descrever populações, espaços e propriedades agrárias, especialmente engenhos. Para o mesmo período, Gabriel Soares de Souza descreveu a costa brasileira, dando especial atenção a baía de Todos os Santos, quando identificou e contou as dezenas de engenhos de açúcar que ali estavam. Ainda que imprecisas estas eram também formas de controle colonial, na medida em que assimilavam mentalmente os territórios ao espaço lusitano, em paralelo ao processo de ocupação territorial efetivo. Não eram engenhos, simplesmente, mas engenhos portugueses que eram contados.

Nunca houve, de fato, um censo geral de toda a América portuguesa. Eles sempre foram feitos aos “pedaços”, seja por capitanias ou “estados”, como se chamavam as divisões políticas que separaram o “Grão-Pará e Maranhão” do chamado “Estado do Brasil”, então consideradas duas unidades diferentes e com governos distintos. Um dos primeiros documentos que formou uma imagem mais geral é aquele denominado “Notícias do Bispado do Rio de Janeiro”, preparado em finais do século XVII e com data de finalização indicando o ano de 1684. É uma listagem de todas as vilas e cidades existentes na repartição sul do Estado do Brasil, desde a vila de Ilhéus até a vila de Curitiba. Cada localidade é descrita e uma estimativa de moradores é apontada. A imagem ainda não é exata e não há informação clara sobre como as pessoas foram contadas. Tal como nos relatos do século XVI, há uma grande tendência ao arredondamento dos totais, indicando que se tratava apenas de uma ideia vaga do total de habitantes. Nesse documento, contudo, há uma novidade em termos de exatidão: são contados os “fogos” (unidades domésticas) e “pessoas de confissão”, não mais os “vizinhos”. Neste caso, é possível ter uma ideia mais clara do total de habitantes, pois as “pessoas de confissão” eram aquelas que já comungavam e poderiam, assim, se confessar. Isso geralmente excluía as crianças menores de 7 anos, ainda que esta idade seja apenas um indicativo. Os “fogos”, também contados nas “Notícias”, eram informações mais gerais que indicavam o número de famílias e poderiam mesmo ser comparáveis aos “vizinhos”, já que estes seriam seus chefes.

É somente no século XVIII, especialmente na segunda metade, que começam a ser feitos levantamentos populacionais mais próximos do que chamamos hoje de censo. Esta mudança não diz respeito apenas ao incremento do interesse lusitano em suas colônias, algo que é bastante notório durante o período pombalino e mesmo depois. Mas, também, à progressiva mudança de visão de mundo sobre soberania, controle e política. Cada vez mais a soberania territorial estava associada à presença de populações nos espaços. Os Estados europeus disputavam suas fronteiras recorrendo às guerras, mas a presença de súditos de um rei – e em grandes quantidades – era cada vez mais um sinal claro de possessão territorial. Enumerar os súditos significava saber o tamanho do reino.[5]

As diversas iniciativas de contagem de populações no período colonial eram sempre fruto das decisões de quem as executava. Até meados do século XVIII, cada apuração era feita com base na forma como se via o mundo, fosse pelo número de vizinhos, pessoas de confissão, gente cristã ou tantas outras formas de classificar. Isso nos revela como aqueles proto-recenseadores compreendiam o mundo e as pessoas que nele habitavam. Deveriam os escravizados ser somados junto com os lusitanos? E os indígenas? As pessoas deveriam ser diferenciadas pela idade? Com estas perguntas, percebemos que calcular populações não era somente uma forma de controle colonial, mas também um modo de diferenciar as pessoas entre si.

É somente na segunda metade do século XVIII que métodos claros para estimar a população passaram a ser definidos e apresentados (impostos, talvez) às localidades. Sim, localidades pois, mesmo que o objetivo fosse enumerar os súditos prontos para a guerra, estes habitavam em vilas e o reino era, assim, o conjunto formado pelas vilas que deviam fidelidade ao rei. Agora cada localidade teria que seguir certas instruções sobre como preparar a contagem de seus habitantes, seguindo critérios claros e comuns. Mas o objetivo não era, simplesmente, relacionar os moradores de cada vila. Tal como o reino era o conjunto das vilas que juravam fidelidade ao rei, a vila era o conjunto das casas (ou “fogos”) que respondiam a um poder local, no caso, ao capitão-mor.

As listas nominativas ou “mapas” de moradores são um caso exemplar dessas novas exigências “metodológicas” de coleta. As regras de produção destes documentos apontavam a seguinte estrutura: a lista de moradores deveria ser feita bairro por bairro, casa por casa e, dentro de cada casa, as pessoas deveriam ser listadas seguindo uma ordem. Tudo começava com o chefe da casa, geralmente um homem mais velho, aquilo que Gilberto Freyre consagrou com o termo “patriarca”. Muitas vezes, por falta dessa figura, era uma viúva ou mulher mais velha que chefiava o fogo. Depois do chefe, era listado seu cônjuge, muito frequentemente a esposa, seguida dos filhos, quase sempre em ordem de idade, mas em alguns casos dando prioridade para os homens. Guiando toda a ordem, estavam três critérios fundamentais para entender aquele mundo: o gênero, a idade e a cor. Era uma sociedade que colocava no topo das famílias aqueles homens mais velhos e mais brancos, em um mundo onde a miscigenação não era incomum.

Era por isso, também, que depois da família senhorial constavam outros personagens que faziam parte da casa, mas de outra maneira. Depois do último filho, vinham ou os agregados ou os escravizados, todos eles também hierarquizados em seu interior, seguindo a mesma lógica que presidia a ordem no interior da família senhorial. Nem sempre havia os tais agregados e, quando havia, eles geralmente apareciam antes que os escravizados. Os agregados são de difícil definição e podem variar segundo os usos locais. Mas, grosso modo, são personagens que não são nem escravizados, nem membros da família senhorial, ainda que em alguns casos, genros e sogras apareçam neste rótulo, até mesmo as mães dos senhores.

Um documento de 1801[6] orientava o modo exato como as listas deveriam ser preparadas. Era uma espécie de “manual” e continha, inclusive, um modelo de preenchimento, com exemplos bastante realistas. As informações deveriam não falar somente sobre a população da casa, mas descrever também a estrutura econômica de cada casa e, ao final, do conjunto da vila, indicando com que outras vilas ela fazia comércio, destacando importações, exportações e consumo local. O mapa da população da vila de Porto Calvo, comarca das Alagoas, capitania de Pernambuco, de 1814, discrimina, além dos habitantes por fogos, os produtos produzidos na vila como açúcar, aguardente, mel, farinhas, legumes, azeite de mamona.[7]

Quando bem-feitas, estas listas indicavam não somente a atividade econômica mais importante de cada casa, mas também a produção anual e a renda naquele período. O “manual” já considerava uma multiplicidade de atividades econômicas e lista, como exemplos potenciais, “senhor de engenho”, “fazendeiro”, “agricultor”, “negociante”, “alfaiate” e “mercador de loja”. Eram todos casos comuns, mas não os únicos, sendo possível encontrar diversas outras atividades, como “fiandeiras”, músicos e outras tantas.

Outra informação contida no “manual” de instruções de 1801 era a coleta de dados sobre os deslocamentos populacionais. Tal como o detalhamento dos aspectos econômicos, as informações sobre movimentos migratórios eram uma inovação de fins do século XVIII e que só foram consolidadas de fato no início do século XIX. Ali vemos, por exemplo, filhos voltando para a casa paterna depois de passar anos em uma escola de outra localidade ou após o serviço militar. O ofício de 23 de dezembro de 1809 dirigido a S.A.R. traz um mapa dos habitantes da capitania de Pernambuco, referente ao ano de 1808, que mostra uma diminuição de 9.078 almas em relação ao ano de 1807, causada pela “grande deserção das famílias” em função de recrutamento.[8]

Também vemos filhos e filhas saindo de casa para montar novas unidades domésticas com seus cônjuges. Vemos escravizados sendo comprados e vendidos, agregados entrando e saindo de casas diferentes e o aparecimento de mães e sogras, pais e sogros. Ao final de cada lista de moradores era produzido um documento de síntese, com os totais de cada localidade. Ali temos tabelas com o total dos nascimentos, das mortes e dos casamentos. Temos também as súmulas do comércio local com outras localidades, um tipo de “balança de pagamentos” municipal, assim como, especialmente a partir de 1798, tabelas com os preços dos produtos mais comuns tanto para gêneros de importação, exportação e consumidos localmente, indicando o preço mínimo, o intermediário e o máximo praticados em cada vila e cidade.

O dado mais interessante e revelador sobre aquela sociedade são as tabelas que consolidavam os dados demográficos. Já não mais contadas dentro de suas casas, mas em uma grande síntese municipal, as pessoas seguiam sendo encaixadas em categorias como “brancos” e “escravos”, “homens” e “mulheres”. Mas dentro dessas grandes classificações, encontramos agora outras formas de agrupamento, desta vez para o terceiro (e não menos importante) identificador pessoal existente na mentalidade do período: a idade. As pessoas eram agrupadas em grandes “classes”: as primeiras quatro eram destinadas aos homens, primeiro os menores de 7, seguidos dos menores de 15, os de 15 a 60 e aqueles acima de 60 anos; as quatro classes seguintes eram as femininas, de zero a 7, a de 7 a 14, de 14 a 50 e acima de 50. Disso, deduz-se que aquela sociedade considerava que as mulheres amadureceriam mais cedo (com 14 anos, um a menos que os meninos) e envelheceriam ainda mais cedo (com 50, sendo os homens 60). A nona classe apontava os nascimentos e a décima, os óbitos.[9]

As listas nominativas de habitantes eram muito comuns em várias partes do Brasil, mas foram particularmente frequentes na capitania de São Paulo. Em outras partes da América portuguesa, encontramos muitos outros exemplos de levantamentos populacionais, geralmente seguindo a mesma mentalidade que orientava a construção das listas. Sua finalidade original, em meados do século XVIII, era listar homens prontos para a guerra. Com o tempo, especialmente ao final do século, sua função já era muito mais próxima do controle estatal sobre a economia, fosse fiscal ou de desenvolvimento regional.

Há outro exemplo de documentação voltada para a contagem de pessoa, um tanto quanto diferente das listas nominativas e com uma finalidade bem diversa: os róis de confessados. Eram arrolamentos populacionais preparados pela igreja católica e com uma finalidade pastoral particular: listar as pessoas aptas à comunhão. Era um modo de o padre local conhecer seus fiéis e remeter os dados do conjunto deles para as instâncias superiores da igreja. Estas fontes deveriam ser produzidas antes da quaresma e lista todos os fiéis maiores de 7 anos, já aptos para a comunhão, indicando o local de moradia, sempre que possível. As condições de preparação dos róis estavam estabelecidas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia desde o início do século XVIII, seguindo instruções previstas no Concílio de Trento.[10]

O Arquivo Nacional possui uma bela coleção de fontes sobre a população colonial que está por ser estudada. A grande maioria desses documentos é, como seria de se esperar, da segunda metade do século XVIII e de princípios do século XIX. Não obstante se tratar de um conjunto geograficamente desigual, os documentos sobre contagem de populações coloniais existentes no Arquivo Nacional podem trazer luz sobre a história das pessoas comuns que viveram na América portuguesa, um esforço que ainda tem muito por ser feito.

 

Fontes utilizadas

ARQUIVO NACIONAL. Mapas de população de províncias. Vice-reinado. Caixa 761.
ARQUIVO NACIONAL. Mapa da população da vila de Porto Calvo, comarca das Alagoas, capitania de Pernambuco, 25 de julho de 1814. Mapas de população de províncias. Vice-reinado. Caixa 761.
ARQUIVO NACIONAL. Registro n. 51, 28 de fevereiro de 1810, Ministério do Reino. Pernambuco. Correspondência do presidente da província. Série Interior (IJJ9 5).
BIBLIOTECA NACIONAL. Projeto Resgate. AHU – São Paulo. Documento 831. Disponível em: http://resgate.bn.br.

 

[1] ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[2] BEAUD, Jean-Pierre; FONSECA, Claudia Damasceno. Le chiffre et la carte. Histoire & mesure [En ligne], n. XXXII-1, 2017.

[3] CARDIM, Fernão. Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, ... desde o ano de 1583 ao de 1590. Imprensa Nacional, 1847, p. 10.

[4] GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa: Editorial Presença, 1971.

[5] SERRÃO, José. O quadro humano. In: HESPANHA, Antonio Manuel (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1998.

[6] BIBLIOTECA NACIONAL. Projeto Resgate. AHU – São Paulo. Documento 831. Disponível em: http://resgate.bn.br.

[7] ARQUIVO NACIONAL. Mapa da população da vila de Porto Calvo, comarca das Alagoas, capitania de Pernambuco, 25 de julho de 1814. Mapas de população de províncias. Vice-reinado. Caixa 761.

[8] ARQUIVO NACIONAL. Registro n. 51, 28 de fevereiro de 1810, Ministério do Reino. Pernambuco. Correspondência do presidente da província. Série Interior (IJJ9 5).

[9] ARQUIVO NACIONAL. Vice-reinado. Mapas de população de províncias. Caixa 761; MATOS, Paulo Teodoro de; SOUSA, Paulo Silveira. La estadística de la población en la América Latina Portuguesa, 1750-1820. Memorias, n. 25 (10 de abril de 2015), p. 31.

[10] SIRTORI, Bruna. Uma fonte inexplorada. Os róis de confessados: possibilidades e limites documentais. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA ANPUH-RJ, 12., 2006. Usos do passado.

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