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Depoimento de Sebastião Francisco

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Terça, 08 de Fevereiro de 2022, 20h32 | Última atualização em Quinta, 12 de Mai de 2022, 15h35

Depoimento de Sebastião Francisco Figueira, morador da freguesia de Campo Grande (RJ), sobre um preto forro de Minas que andava curando as filhas de Manoel Luiz e Francisco José, que “se achavam com vários espíritos malignos”.

 

Conjunto documental: Secretaria de Estado do Ministério do Reino
Notação: caixa 733
Datas-limite: 1775-1873
Código do fundo: 59
Título do fundo: Negócios de Portugal
Argumento de Pesquisa: Feitiçaria
Data do documento: s.d.
Local: Campo Grande, Rio de Janeiro

 

Veja o documento na íntegra

 

Sebastião Francisco Figueira, casado, idade de 43 anos, morador no Campo Grande [1], que vive da lavoura; disse ouvira dizer por várias pessoas, que em casa de Manoel Luiz, se achava a dias atrás um preto forro[2] de Minas[3], que estivera curando, as filhas de Manoel Luiz e Francisco José, que se achavam com espíritos malignos, que cujos [espíritos] falavam várias vezes, assim como na mesma ocasião se ajuntaram várias pessoas enfeitiçadas, para o dito curador[4] a curar, ele conta que nenhum dos doentes ficaram bons, só sim na mesma forma, assim como o feitor[5] do capitão Bento Luiz que morreu na mesma ocasião.

Sebastião Francisco Figueira

 

[1] CAMPO GRANDE: A região conhecida como o Campo Grande, devido à sua vasta extensão geográfica, fazia parte do “sertão carioca”, expressão cunhada pelo naturalista Magalhães Côrrea para se referir a área rural da cidade do Rio de Janeiro, distante do centro urbano e com fraca densidade demográfica. Ela se estendia entre a serra do Gericinó e as serras da Tijuca, Pedra Branca, Bangu, Cabuçu e a localidade de Campo Grande (FRÓES e GELABERT. Rumo ao Campo Grande por trilhas e caminhos. Rio de Janeiro: Gráfica Brunner, 2004). As terras da região foram distribuídas através do sistema de sesmarias, com o objetivo de estimular a ocupação e o desenvolvimento agrícola da área. As primeiras fazendas e engenhos foram formados no século XVII, destinadas sobretudo à lavoura da cana-de-açúcar e a criação de gado, mas também à gênero de subsistência para abastecimento do centro da cidade. Em 1673, foi criada a paróquia de Nossa Senhora do Desterro, que seria a matriz da freguesia de Campo Grande, instituída a partir do desmembramento com a freguesia de Irajá.

[2] FORRO: Eram considerados forros os ex-escravizados que haviam obtido a alforria, por meio de uma carta, por testamento ou no momento do batismo. Até a segunda metade do século XVII encontra-se a expressão “índio forro” com o sentido de libertar gentio como eram chamados os indígenas da suposta barbárie em que viviam, pela ótica cristã. Para Eduardo França Paiva, as alforrias são um componente da escravidão e já no mundo antigo eram praticadas com frequência. Alforria, como lembra esse autor, é um termo de origem árabe e equivale a libertar. Mas no mundo romano as libertações de escravos já ocorriam com frequência, chamadas de manumissões. Entre os ibéricos, com a escravidão introduzida no Novo Mundo, os forros ou resgatados foram sua imediata contrapartida. A ideia de resgate era bem conhecida dos portugueses que haviam tido que resgatar cristãos cativos no Norte da África. A partir do século XVII o aumento de africanos escravizados na América portuguesa provocou também a quantidade e variedade de tipos de alforrias, compradas, obtidas por negociação entre senhor e escravo, prometidas. A área das minas foi um catalizador para entrada de um imenso contingente de escravos no Brasil e fez surgir outra configuração social, com vilas e arraiais nos quais a maioria era de escravos, forros e nascidos livres. Ao final do setecentos torna-se comum que libertos passassem a possuir escravos, que da mesma forma lograram ser alforriados dentro da mesma lógica dos seus proprietários forros. Mas, como conclui França, a ascensão desses forros não apagava o seu passado naquela sociedade escravista. A combinação do nome com a categoria imposta e a condição jurídica acompanhava os “pretos forros” ou “mulato forro” até que acabasse por se dissipar. (Cf. FRANÇA, E. O. Alforria. In: GOMES, F., SCHWARCZ, Lilia M. Dicionário da escravidão e liberdade, 2018).

[3] PRETO MINAS: O termo “Mina” foi usado, entre os séculos XVII e XIX, como designação étnica de africanos escravizados e traficados para a América. Foram construídas identidades de acordo com a cor e procedência da população escravizada: minas, angolas, cabindas, benguelas, monjolos – identidades cunhadas por traficantes de escravos, europeus ou africanos, ou pela burocracia colonial, que tinham como função classificar e organizar a grande massa de africanos estabelecida no Novo Mundo. A expressão “preto Mina” carregava informações indispensáveis que acompanhavam o escravo por toda vida, mesmo que esse trocasse de proprietário ou conseguisse sua alforria; a cor a e a origem eram atributos indeléveis. A identidade Mina estava diretamente relacionada aos africanos trazidos da Costa do Ouro na África Ocidental, ou Costa da Mina como era conhecida pelos portugueses, englobaria ainda a Costa do Marfim e, no século XVII, a Costa dos Escravos, portanto era usada para designar uma grande variedade de grupos étnicos e linguísticos. Segundo Juliana Barreto Farias e Mariza de Carvalho Soares, “eram no seu conjunto povos diversos que foram escravizados em diferentes momentos de suas histórias em função da demanda do comércio atlântico de escravos. Pode-se hoje afirmar que a “nação mina” engloba indivíduos que pertenceram a diferentes povos e que, dentre eles, os mais numerosos foram os conhecidos como de línguas do grupo gbe e do iorubá” (De GBE a Iorubá: os pretos Minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII-XX. Revista África(s), v. 04, n. 08, p. 46-62, jul./dez. 2017). Usada pelos colonizadores como forma de identificação dos escravizados, a expressão também serviu como organização de grupos identitários com um passado étnico em comum, criando formas de sociabilidades do outro lado do Atlântico. A afirmação dessas identidades seria fundamental para a inserção do africano escravizado na sociedade urbana e suas redes de trabalho, religiosas ou de parentescos.

[4] CURADOR: As artes de curar no Brasil colonial estão relacionadas a uma complexa interação entre os diferentes saberes preocupados em preservar a saúde, diagnosticar e curar o corpo doente. Múltiplos foram as práticas terapêuticas e os agentes envolvidos na arte de curar e estiveram, quase sempre, a cargo de parteiras, curandeiros, feiticeiros, raizeiros, benzedores, padres, barbeiros e sangradores, licenciados ou não. A medicina na América portuguesa foi resultado do arranjo entre as tradições culturais populares e os conhecimentos teóricos dos poucos profissionais instalados na colônia. A Coroa portuguesa procurava, através de regimentos e órgãos de fiscalização, coibir o exercício ilegal das artes de curar, ou seja, aquela praticada sem a autorização e sem a licença exigida. Delegados e juízes comissionados do cirurgião-mor e físico-mor do Reino foram os responsáveis pela fiscalização das artes de curar nos domínios ultramarinos até a criação da Fisicatura no Rio de Janeiro em 1808, órgão responsável, entre outras coisas, por conceder autorizações e licenças para a atuação dos terapeutas.  No entanto, a dispersão das povoações pelo vasto território brasileiro dificultava a aplicação e fiscalização das leis editadas em Portugal sobre as práticas médicas; além da quantidade de profissionais oficializados não ser suficiente para atender as demandas de toda população (COELHO, Ricardo Ribeiro. O universo social das artes de curar no Brasil. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011). Assim, a medicina popular, aquela praticada sem licença e estruturada no conjunto de práticas, hábitos e conhecimentos nascidos a partir do convívio assíduo entre as três culturas formadoras da sociedade brasileira – indígenas, africanos e europeus – representaria grande parte dos esforços empreendidos na cura dos corpos doentes. Ervas medicinais, amuletos e rituais religiosos faziam parte do repertório do curador, pois a crença comum era de explicações sobrenaturais para os males do corpo e da alma, provocados por agentes externos, incorporado ou provocado através de magia ou feitiçaria. Segundo Coelho, a fiscalização costumava agir sobre os curadores populares somente quando o interesse de algum licenciado estivesse ameaçado. A atuação de curadores informais, geralmente pessoas pobres de origem escrava ou indígena, foi amplamente aceita em todas as classes sociais. A participação de escravos e negros libertos entre os praticantes dos ofícios mecânicos das artes de curar, sobretudo barbeiros, sangradores e curadores, era comum e uma forma de obter vantagens e oportunidades. Alguns negros curadores ganharam popularidade em função dos serviços prestados, garantindo maior status social e tecendo, através da arte de curar, uma forma de resistência contra a opressão do sistema escravista.

[5] FEITOR: conhecidos pela incumbência de infligir punições aos escravizados, sua função como trabalhadores rurais assalariados era administrar o trabalho escravo nos engenhos e fazendas. Tinham permissão para aplicar castigos de acordo com seu discernimento e há frequentes registros da extrema brutalidade com que se conduziam, capazes de deixar um cativo inválido. Muitos avisos foram emitidos pelos governadores e intendentes no sentido de tentar coibir tais abusos, em geral sem sucesso. Para controle dos escravos, o feitor andava sempre com o chicote de couro cru, que usava muitas vezes na aplicação da pena. Durante muito tempo, esse papel era desempenhado por portugueses, mas com o tempo os brancos nascidos no Brasil e mesmo os mestiços se tornaram feitores. A imposição do castigo transferia para o feitor, um assalariado sem posses, embora bem pago, o poder soberano de vida e morte, pelos menos nas aparências, desonerando, parcialmente, o grande senhor do ódio cotidiano dos seus escravos, permitindo que este ocupasse, quando conveniente, uma posição paternalista em relação a sua propriedade humana.

(http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao36/materia03/texto03.pdf)

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