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Saúde e Higiene Pública na Ordem Colonial e Joanin

Sala de aula

Escrito por cotin | Publicado: Quinta, 22 de Fevereiro de 2018, 18h10 | Última atualização em Quinta, 22 de Fevereiro de 2018, 18h12

Inspeção às embarcações

Proposta de criação de uma Visita de Saúde, estabelecimento encarregado de inspecionar todas as embarcações que entrassem no porto do Rio de Janeiro a fim de evitar a ocorrência de epidemias. O plano apresentado pelo procurador-geral da Real Junta de Comércio, Agostinho da Silva Hofman, ao príncipe regente, contém onze artigos nos quais regulamenta a inspeção às embarcações, o funcionamento da Visita de Saúde, estabelecendo suas atribuições, seus funcionários, além de estipular suas remunerações.

 

Conjunto documental: Expediente
Notação: IS4 1
Datas-limite: 1803-1818
Título do fundo: Série Saúde
Código do fundo: BF
Argumento de pesquisa: cidades, saúde pública 
Data do documento: dezembro de 1809
Local: Rio de Janeiro
Folhas: 11

Senhor

Em todas as praças marítimas do mundo civilizado, se acha estabelecida uma corporação que vigia rigorosamente, como Visita da Saúde sobre os navios que entram nos diferentes portos, se vem de países onde há contágios, se trazem doentes, se as cargas trazem avarias de podridão, e segundo o estado de gêneros, da equipagem, e sítio donde vem, por longas viagens, maus mantimentos arribadas, ou outros motivos trazem às equipagens escorbuto[1], febres, ou outras doenças contagiosas, no ato desta visita se mandam por em quarentena semelhantes navios, os doentes, e as cargas vão para os lazaretos estabelecidos para este fim; tudo debaixo da direção da dita corporação, como assistência dos precisos guardas, até que pelos peritos se conheça e julgue, que pode haver comunicação, sem um perigo digno de tanta atenção, e que pode ter consequência as mais funestas, nas povoações das mesmas praças, e até grassar pelo interior dos Reinos e Impérios, em geral.

Um tão sólido estabelecimento, e indispensáveis cautelas, achavam-se praticadas em todas as praças da Europa, e muito rigorosamente observadas, de tempo imemorial, na cidade de Lisboa, e mais portos marítimos de Portugal; o que não obstante, todos sabemos o triste estrago que sofreu a povoação daquela cidade, por causa da peste que ali houve, e deu motivo a muitos votos, e penitências, para alcançar do Altíssimo a extinção de tal contágio, que ainda hoje se celebram com as procissões de penitência a Nossa Senhora do Ó, a São Sebastião, etc.

Por uma falta de cautela não se pôde evitar, há poucos anos, a grande peste que em Cadiz, Sevilha, Málaga, e em Gibraltar; a qual muito atemorizou Lisboa, Setúbal e Algarve; que a não ter havido tantas providências e cautelas na Visita da Saúde sobre os navios por entrada, obrigando-os a rigorosas quarentenas, teríamos talvez experimentado um flagelo de imensas desgraças, igual a que sofreram aquelas praças; tudo causado por um navio americano, que entrou em Cadiz, com febre amarela[2], sobre o qual houve pouca cautela, e foi a origem das infelicidades que experimentaram, aqueles países, e que tanto atemorizaram Portugal, e toda a Europa.

Não é preciso trazer à memória, os grandes contágios de peste, que tem havido, na Inglaterra em outro tempo trazida pelos navios que ali entraram da Berbéria; na Holanda trazida por um navio que veio de Smirna; e na Itália, onde tem sido tão frequentes semelhantes contágios, que deu lugar a que ainda hoje em Lisboa, se não concede descarga a navio algum vindo de Itália, com cargas de papel, sedas, ou fardos de outros gêneros; que não seja para lazaretos; e trazendo trigo, cevada ou milho se descarrega por bica; com as precisas quarentenas; e mais providencias praticadas.

É pois evidente, Augusto Senhor, que se na Europa, onde o clima é mais fresco, o ar mais saudável e sutil, e os ventos nortes são muito frequentes e fortes para depurar o mesmo ar, tem havido tantos contágios de peste, que tem dado motivo a grandes medidas de cautela e prevenção, quantas mais se fazem precisas estabelecer, quanto antes, em um país úmido, e excessivamente cálido, como é o Rio de Janeiro; cuja cidade e Corte, se acha fundada em uma planície ou vale, rodeado de montanhas, com pouco escoante as águas, que ficam estagnadas nas partes de menos [declive] da mesma cidade.

Em um país onde entram imensos navios carregados de negros[3] cheios de sarnas[4], lepra[5], febres e outras moléstias contagiosas: em um porto de tanta frequência de navios, vindos de todas as partes com diferentes cargas, e até da América Setentrional, onde em algumas províncias são tão frequentes os contágios de febre amarela, que em Filadélfia, tem havido ano, de morrer tanta gente, que os seus habitantes fogem para os campos, abandonando as suas casas, e deixando a ficar quase deserta aquela cidade, para a qual somente tornam no rigor do inverno, depois de remediado ou desvanecido totalmente o mesmo contágio, em uma praça marítima, aonde estão entrando e entrarão navios vindos da Jamaica e de outros portos vizinhos de S. Domingos e Martinica, de cujo país [demanou] a primeira causa de febre amarela, que ainda hoje  infesta quase toda a América Setentrional.

A vista, pois, desta verídica e sólida exposição, e do incontestável risco em que deve considerar-se, não só todos os portos de nossa América, como muito principalmente esta cidade, e Corte do Rio de Janeiro[6] onde Vossa Alteza Real reside com toda a Real Família[7], cuja preciosa vida e saúde deve ser o primeiro objeto dos nossos ardentes desvelos, para acautelar e prever semelhantes males, que só a lembrança deles fazem tremer, e não chegarmos a sofrer tais horrorosos flagelos, a que vejo exposta a Real habitação tão próxima ao mar, e uma cidade de tanta povoação, considero pelo objeto o mais digno dos meus deveres, oferecer aos pés do trono de Vossa Alteza Real o seguinte plano, o qual me parece que será muito do Real agrado de Vossa Alteza Real, em razão de ser um estabelecimento da primeira utilidade e precisão, e para que lembro os meios os mais fáceis e os mais próprios, ou análogos ao estado presente, para se pôr em prática, como vou manifestar.

(...)

Agostinho da Silva Hofman que tem a glória de ser fiel vassalo de Vossa Alteza Real, e que tem a honra de por aos pés do real Trono de Vossa Alteza Real o presente plano, espera na benignidade e incomparável bondade de Vossa Alteza Real haja de lhe fazer a graça da propriedade do ofício de Inspetor Intérprete da dita Visita da Saúde, pois que concorrem nele não só a ciência de falar perfeitamente a maior parte das línguas estrangeiras que fazem o comércio da Europa; predicado assaz preciso em uma interpretação de tanto cuidado qual é esta Visita da Saúde, mas também muita prática mercantil, de todas as nações, e do modo como se decidiram imensos casos sucedidos com navios impedidos por causa de contágios cuja graça implora, por três vidas incluída a do suplicante, e pelo que.

  1. Mce.

 

[1] ESCORBUTO: os portugueses chamaram o escorbuto de “mal de Luanda”, doença causada pela carência de vitamina C – ácido ascórbico – no organismo. Durante muito tempo, discussões impregnadas de racismo, atribuíam ao continente africano e a população negra submetida a migração compulsória para a América, a origem dos males que acometiam luso-brasileiros, como é o caso do escorbuto, por isso a relação entre a doença e a região de Luanda. A inflamação nas gengivas, que acarretava a perda dos dentes, e as hemorragias, que causavam a anemia e em casos extremos a morte, eram sintomas comuns entre os marinheiros, devido à falta de vitamina C na dieta alimentar durante o longo período de travessia em alto-mar, e não originária da África como se atribuiu. A partir do século XVIII, as tripulações passaram a consumir frutas cítricas (lima, laranja e limão) que são fontes ricas em ácido ascórbico, para combater a doença.

[2] FEBRE AMARELA: a doença que assolou a capitania de Pernambuco na segunda metade do século XVII foi considerada, pela literatura médica, a primeira epidemia de febre amarela no Brasil. No século XVI, já havia registros de casos isolados da doença na ilha de São Domingos (onde se situam hoje a República Dominicana e o Haiti) e em Cuba, cujo primeiro surto oficialmente documentado data de 1620. O elevado número de infectados, as altas taxas de mortalidade e o período prolongado da epidemia que vigorou na capitania de Pernambuco, de 1685 e 1695, levaram as autoridades coloniais a elaborar medidas sanitárias de combate à febre amarela. O médico português João Ferreira da Rosa chegou à capitania de Pernambuco para estudar a epidemia que se espalhou no Recife a partir de 1685. As medidas profiláticas e higiênicas contidas no seu Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco, publicado em Lisboa em 1694, foram postas em prática a partir de 1691, mandadas executar pelo governador Antônio Félix Machado da Silva e Castro, 2 º marquês de Montebelo. Os parâmetros de controle adotados por Montebelo, que contraiu e se curou da febre seguindo as orientações de Ferreira da Rosa, para combater a epidemia possuíam amplo raio de ação visando ao controle de vários pontos da cidade do Recife: fiscalização do porto; detecção do doente e isolamento em locais apropriados para evitar a propagação da doença; limpeza das casas, ruas e praias e algumas medidas que proibiam a prostituição, com punição dos infratores, em vistas a evitar sua disseminação. Para Ferreira da Rocha, a causa da febre amarela era o ar infectado que se tornava contagioso devido a causas astrológicas, físicas e morais. A febre amarela atingiria o indivíduo através do ar (miasmas) por isso as medidas prescritas visavam à sua purificação (acender fogueiras, limpar as casas, lavar as roupas, limpar as cloacas e reforçar as sepulturas). Em 1686, houve um grande surto de febre amarela na Bahia, sendo este um dos últimos registros do século XVII. A terrível epidemia voltaria a assolar a cidade de Salvador no século XIX. A causa do surto de 1849 foi atribuída à chegada ao porto daquela cidade de um navio procedente de Nova Orleans (Estados Unidos). Em 1850, nova epidemia vitimou um terço da população do Rio de Janeiro. No final do século XIX, o médico cubano Carlos Finlay (1833-1915) defendeu em seus artigos a tese de que o mosquito era o verdadeiro transmissor da febre amarela. Essa hipótese só seria confirmada anos mais tarde. Em 1900, uma comissão médica do exército americano chefiada pelo médico Walter Reed (1851-1902), que realizou novos estudos em Cuba, confirmou a hipótese do médico cubano. No Brasil, a primeira grande campanha vitoriosa contra a febre amarela foi chefiada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. As medidas sanitárias tomadas pelo então diretor de Saúde Pública, como a criação de brigadas de mata-mosquitos e a vacinação obrigatória geraram muita polêmica à época. Entretanto, garantiram a erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro em 1907. Nos anos 1930 do século XX, a Fundação Rockefeller começou a produzir vacinas em larga escala. A febre amarela é uma doença infecciosa cujo agente é um arbovírus pertencente ao gênero Flavivirus febricis que reúne cerca de setenta vírus na qual a maioria é transmitida por insetos. Os hospedeiros são os primatas (macacos) que habitam as florestas tropicais. O vírus não é transmitido de uma pessoa para a outra, ocorrendo a transmissão apenas quando o mosquito Aedes aegypti pica uma pessoa ou primata (macaco) infectado, normalmente nas regiões de floresta e cerrado, e depois pica uma pessoa saudável que não tenha sido vacinada. O mosquito aegypti é originário da África e emigrou daquele continente para a Europa e América a partir do século XVI nas embarcações que faziam o comércio de escravos.

[3] NAVIOS DE ESCRAVATURA: pouco se sabe como eram os navios que transportaram milhões de africanos escravizados pelas rotas de comércio do Atlântico. Segundo Jaime Rodrigues, no Dicionário da escravidão e liberdade (2018), são narrativas de viajantes e ilustrações de artistas estrangeiros que nos trazem limitadas informações do que representou a migração forçada de africanos para o continente americano. Chamados navios negreiros ou tumbeiros foram se transformando e adaptando-se ao comércio de mercadoria humana ao longo dos mais de três séculos em que cruzaram o oceano. O tráfico de escravos para o Brasil fazia-se em diferentes embarcações, no entanto, usualmente, eram navios bastante manobráveis devido as águas rasas dos ancoradouros africanos; velozes, para escapar da marinha britânica após a proibição do tráfico em 1831, e baratos, para atenuar os prejuízos em caso de naufrágio ou captura. Ainda segundo Rodrigues, em seu artigo Dossiê Tráfico Negreiro (História Viva, abril de 2009), na Bahia encontravam-se os principais estabelecimentos para construção e reparo desses navios, utilizando como matéria prima as madeiras obtidas no nordeste brasileiro, transportadas por indígenas até o litoral. Mas, foi o porto do Rio de Janeiro que registrou o maior número de entrada de navios negreiros na América, principalmente após a transferência da Corte no século XVIII, onde também seria instalada a infraestrutura necessária para construção e reparo naval. Tais embarcações realizavam a travessia atlântica atulhadas de negros cativos – de cem a seiscentas pessoas de acordo com a capacidade da embarcação –, muitas vezes numa quantidade maior do que seria suportada. Os escravos eram separados por sexo, mantidos nus, amontoados, com as mãos ou pés atados, acorrentados uns aos outros, mal alimentados – numa tentativa de diminuir sua resistência – e sujeitos a doenças. Passavam toda ou grande parte da viagem, que poderia durar de um a três meses, no porão do navio – divididos em três patamares, com altura de menos de meio metro cada um. Eram locais úmidos, mal ventilados, apertados e mal-cheirosos. O índice de mortalidade era bastante elevado – seja pelas epidemias que assolavam os navios ou pela violência da tripulação –, chegando a 1/4 do número de pessoas embarcadas. Rebeliões eram frequentes, e algumas revoltas resultavam na conquista da embarcação pelos escravos, como a do navio espanhol Amistad, em 1839. Capturados por um navio de guerra norte-americano, foram julgados pela Suprema Corte dos EUA, que os declarou livres, de acordo com o direito internacional que proibia o comércio de escravos. Os navios de escravatura transportaram cerca de 12,5 milhões de africanos para outras terras, sobretudo na América. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos negros, um total de 4,8 milhões de africanos.

[4]  SARNAS: termo que designou, no Brasil, até meados do século XIX, de forma genérica, qualquer erupção na pele, confundindo-se com outras lesões cutâneas produzidas por doenças, como a sífilis, a lepra, entre outras. O ácaro Sarcoptes scabiei (ou Acarus scabiei) foi descrito pelo botânico sueco Carlos Lineu em 1758 e, mais tarde, o médico italiano Simon François Renucci demonstrou o seu papel na origem da escabiose humana (sarna). A doença causa reação inflamatória, urticária e coceira intensa. A transmissão parasitária se manifesta por meio do contato, especialmente em locais onde se reúne muitas pessoas (exércitos, hospitais, presídios etc.) e péssimas condições higiênicas. As crônicas e narrativas dos anos de colonização e do século XIX registraram a ocorrência da escabiose entre os indígenas brasileiros, os europeus e os escravos africanos aglomerados nos porões dos navios. Nesse período, os banhos de mar foram utilizados com bastante eficácia no tratamento da sarna dada a inexistência de escabicidas e outros medicamentos hoje empregados.

[5] MAL DE SÃO LÁZARO: a hanseníase, também chamada genericamente de lepra ou mal de São Lázaro, é uma doença causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, ou bacilo de Hansen. É uma doença infectocontagiosa de evolução crônica que ataca as células cutâneas e nervosas periféricas e se manifesta por nódulos e lesões na pele com diminuição da sensibilidade e pode causar atrofias, paralisias e incapacitação física permanente. O termo antigo “lepra” englobava uma série de outras afecções de pele semelhantes à hanseníase, mas de causas diversas. A origem da doença é incerta, mas acredita-se que tenha surgido na Ásia, já que há referências a ela pelo menos desde o século IV a.C. em manuscritos da Índia e China, além de registros também no Egito. Muito do estigma e preconceito existentes em relação à doença vem do fato de ela ter sido descrita na Bíblia, considerada uma forma de punição de Deus aos pecadores, associada à ideia de impureza, perversidade, repulsa, da corrupção da carne e do espírito. As narrativas religiosas associavam quaisquer marcas na pele e deformidades à “lepra”, tanto que o diagnóstico era feito por sacerdotes, religiosos, e não por médicos. Os portadores da doença eram afastados do convívio social, expulsos das cidades, obrigados a usarem roupas e luvas que cobrissem o máximo do corpo, e mesmo um sino, que anunciasse sua presença; não poderiam se casar, trabalhar, entrar em casas, hospedarias ou igrejas. Embora fossem objeto de caridade por ordens religiosas, irmandades católicas e devotos, o sentimento que prevalecia era o medo e a exclusão, já que não havia cura e o tratamento empregado não produzia resultados. O uso do termo “mal de Lázaro” era inspirado no episódio narrado no Novo Testamento, sobre o mendigo Lázaro, “leproso”, que quando morre ascende aos céus. Antes de ser cientificamente descrita acreditava-se que a doença era hereditária ou transmissível sexualmente, o que levava a mais discriminação e isolamento de famílias inteiras, até a descrição do bacilo pelo cientista norueguês Gerhardt Armauer Hansen em 1873. Chegou ao Brasil com o início da colonização, não havendo consenso se trazida por europeus ou africanos. As primeiras medidas para contenção e controle da doença datam do século XVIII, com a construção de lazaretos, hospitais e asilos, todos controlados pela Igreja Católica. O primeiro asilo construído no Brasil foi no Recife, em 1714; em 1763 foi inaugurado o Hospital de Lázaros do Rio de Janeiro, em São Cristóvão, administrado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária (também conhecido como Hospital Frei Antônio). Entre os séculos XVIII e XIX outras cidades brasileiras também receberam instituições para cuidar dos chamados “lazarentos” – todas de caráter caritativo e assistencial, mas que visavam excluir os doentes da sociedade. Já na República, foi criado o Laboratório Bacteriológico em 1894, funcionando no hospital Frei Antônio e foi a primeira instituição pública para pesquisa e atenção da doença. Até as primeiras décadas do século XX, todas as instituições asilares e hospitais ainda eram mantidos pela Igreja. Entre os anos de 1930 e 1970 a política adotada pelos governos brasileiros foi a de segregação obrigatória dos doentes, isolados e confinados nos “leprosários”, que havia em praticamente todos os estados brasileiros. Hoje em dia o tratamento da doença, que permite a cura total, é realizado de forma ambulatorial e sem necessidade de afastamento da família e da sociedade. Entretanto, até hoje a hanseníase pode ser considerada um grave problema de saúde pública no Brasil, que atinge principalmente as populações mais pobres e desassistidas de condições sanitárias.

[6] RIO DE JANEIRO: a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada tendo como marco de referência uma invasão francesa. Em 1555, a expedição do militar Nicolau Durand de Villegaignon conquista o local onde seria a cidade e cria a França Antártica. Os franceses, aliados aos índios tamoios confederados com outras tribos, foram expulsos em 1567 por Mem de Sá, cujas tropas foram comandadas por seu sobrinho Estácio de Sá, com o apoio dos índios termiminós, liderados por Arariboia. Foi Estácio que estabeleceu “oficialmente” a cidade e iniciou, de fato, a colonização portuguesa na região. O primeiro núcleo de ocupação foi o morro do Castelo, onde foram erguidos o Forte de São Sebastião, a Casa da Câmara e do governador, a cadeia, a primeira matriz e o colégio jesuíta. Ainda no século XVI, o povoamento se intensifica e, no governo de Salvador Correia de Sá, verifica-se um aumento da população no núcleo urbano, das lavouras de cana e dos engenhos de açúcar no entorno. No século seguinte, o açúcar se expande pelas baixadas que cercam a cidade, que cresce aos pés dos morros, ainda limitada por brejos e charcos. O comércio começa a crescer, sobretudo o de escravos africanos, nos trapiches instalados nos portos. O ouro que se descobre nas Minas Gerais do século XVIII representa um grande impulso ao crescimento da cidade. Seu porto ganha em volume de negócios e torna-se uma das principais entradas para o tráfico atlântico de escravos e o grande elo entre Portugal e o sertão, transportando gêneros e pessoas para as minas e ouro para a metrópole. É também neste século, que a cidade vive duas invasões de franceses, entre elas a do célebre Duguay Trouin, que arrasa a cidade e os moradores. Desde sua fundação, esta cidade e a capitania como um todo desempenharam papel central na defesa de toda a região sul da América portuguesa, fato demonstrado pela designação do governador do Rio de Janeiro Salvador de Sá como capitão-general das capitanias do Sul (mais vulneráveis por sua proximidade com as colônias espanholas), e pela transferência da sede do vice-reinado, em Salvador até 1763, para o Rio de Janeiro quando a parte sul da colônia tornou-se centro de produção aurífera e, portanto, dos interesses metropolitanos. Ao longo do setecentos, começam os trabalhos de melhoria urbana, principalmente no aumento da captação de água nos rios e construção de fontes e chafarizes para abastecimento da população. Um dos governos mais significativos deste século foi o de Gomes Freire de Andrada, que edificou conventos, chafarizes, e reformou o aqueduto da Carioca, entre outras obras importantes. Com a transferência da capital, a cidade cresce, se fortifica, abre ruas e tenta mudar de costumes. Um dos responsáveis por essas mudanças foi o marquês do Lavradio, cujo governo deu grande impulso às melhorias urbanas, voltando suas atenções para posturas de aumento da higiene e da salubridade, aterrando pântanos, calçando ruas, construindo matadouros, iluminando praças e logradouros, construindo o aqueduto com vistas a resolver o problema do abastecimento de água na cidade. Lavradio, cuja administração se dá no bojo do reformismo ilustrado português (assim como de seu sucessor Luís de Vasconcelos e Souza), ainda criou a Academia Científica do Rio de Janeiro. Foi também ele quem erigiu o mercado do Valongo e transferiu para lá o comércio de escravos africanos que se dava nas ruas da cidade. Importantíssimo negócio foi o tráfico de escravos trazidos em navios negreiros e vendidos aos fazendeiros e comerciantes, tornando-se um dos principais portos negreiros e de comércio do país. O comércio marítimo entre o Rio de Janeiro, Lisboa e os portos africanos de Guiné, Angola e Moçambique constituía a principal fonte de lucro da capitania. A cidade deu um novo salto de evolução urbana com a instalação, em 1808, da sede do Império português. A partir de então, o Rio de Janeiro passa por um processo de modernização, pautado por critérios urbanísticos europeus que incluíam novas posturas urbanas, alterações nos padrões de sociabilidade, seguindo o que se concebia como um esforço de civilização. Assume definitivamente o papel de cabeça do Império, posição que sustentou para além do retorno da Corte, como capital do Império do Brasil, já independente.

[7] JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

Escola de Cirurgia da Bahia

Ofício do marquês de Aguiar ao conde dos Arcos comunicando que o rei negou a representação dos alunos do curso médico-cirúrgico da Bahia. Estes solicitavam dispensa das lições de cirurgia prática que deveriam ser ministradas todas as manhãs na enfermaria do hospital, pelo professor Manoel José Estrela, argumentando que o professor nunca comparecia no horário determinado. Foi ordenado que os cirurgiões da Santa Casa de Misericórdia façam os curativos às sete horas da manhã, observando que em todas as estações do ano naquela cidade, antes daquele horário, o dia já está claro o bastante para o cumprimento das tarefas anteriores ao curativo. 

 

Conjunto documental: Bahia, Ministério do Reino. Correspondência do presidente da província
Notação: IJJ9 23
Datas-limite: 1808-1819
Título do fundo: Série Interior
Código do fundo: AA
Argumento de pesquisa: moléstias
Data do documento: 3 de setembro  de 1816
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 204v e 205 - ofício nº 84

 

 

Para o mesmo conde dos Arcos[1]

Nº 84.      Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor com o ofício de Vossa Excelência nº 34, em data de 16 de junho passado, foram presentes a El Rei meu senhor o requerimento dos alunos do curso médico-cirúrgico dessa cidade[2], que pretenderam ser dispensados de irem as enfermarias do hospital, por não comparecer nelas a horas determinadas pelo artigo 9º dos estatutos Manoel José Estrella[3] para lhes dar as lições de cirurgia prática, a informação, que a este respeito deram por ordem de Vossa Excelência os lentes[4] do referido curso, e o que consequentemente também representou o sobredito lente Manoel José Estrella: E o mesmo senhor, depois de ouvir sobre este objeto o diretor geral dos mencionados estudos, Manoel Luis Álvares de Carvalho[5], não podendo deixar de estranhar, que se queira já introduzir uma bem notável relaxação neste estabelecimento nascente, e que os estudantes ousem acusar os seus lentes, sobre o que Vossa Excelência lhes fará advertir para que se não afrouxe a religiosa obediência, e respeito, que lhes devem, não se dignou a deferir às referidas representações, e houve por bem aprovar a ordem, que Vossa Excelência deu para os cirurgiões do partido da Santa Casa da Misericórdia[6] fazerem o curativo às sete horas da manhã; não parecendo sortidas as razões produzidas pelo Lente Estrella, para alterar a hora determinada, e eximir-se de dar nela as lições: Por quanto não está essa cidade debaixo de um clima tal, que já antes das sete horas da manhã não seja dia bem claro em qualquer estação do ano, e que não haja por isso bastante tempo para terem os estudantes almoçado, e recordado as suas lições, para achar-se às sete horas varrido, e arejado o Hospital, e preparado os panos, fios, e mais coisas precisas para o curativo, uma vez que o Hospital tenha o fornecimento preciso para não esperar, que se enxuguem e sequem os panos de que se usarão no dia antecedente, e que muito cedo se cuide na limpeza das enfermarias, até para os doentes gozarem do ar regenerador das manhãs, e para haver tempo para se dissiparem os miasmas impuros[7], sendo para isso muito conveniente, que haja também desinfestadores e ventiladores: E como com esta ordinária providência não farão danos aos professores e discípulos o mau cheiro das enfermarias, que só o pode haver por incúria e falta de asseio, recomenda Sua Majestade a Vossa Excelência que haja de aplicar os meios, que lhe parecerem convenientes para que a Santa Casa da Misericórdia faça cuidar na limpeza diária do Hospital a horas competentes, e o tenha fornecido do necessário para o curativo dos seus enfermos. O que participa a Vossa Excelência, para que assim se execute. Deus guarde a Vossa Excelência. Palácio do Rio de Janeiro em 3 de setembro de 1816 = Marquês de Aguiar[8].

 

[1] BRITO, D. MARCOS DE NORONHA (1771-1817): oitavo conde dos Arcos, nasceu em Lisboa e foi o último vice-rei do Brasil. Destacou-se, ainda em Portugal, na carreira militar, e chegou a atingir a patente de tenente-general em 1818. Chegou à América portuguesa em 1803 para ocupar o cargo de governador da capitania do Pará e Rio Negro, onde permaneceu até 1806, quando foi promovido para o cargo de vice-rei, transferindo-se para o Rio de Janeiro. Ficou sob sua responsabilidade a preparação da cidade para ser a nova sede do Império português e receber a família real e a Corte. Em 1808, com a chegada do príncipe regente, findaram-se as funções de vice-rei, tendo sido nomeado, no ano seguinte, governador da Bahia, cargo que assumiu somente em 1810 e nele permaneceu até 1818. Neste período, ajudou a estabelecer a primeira tipografia e o jornal A Idade de Ouro na Bahia, fundou a Biblioteca Pública de Salvador e teve importante papel no combate a rebeliões e desordens causadas por escravos. Entrou em conflito algumas vezes com a classe senhorial local, que o considerava demasiadamente indulgente no trato com os escravos. O conde, por sua vez, acusava a elite baiana de ser selvagem, mesquinha e cruel com seus cativos, gerando sofrimento desnecessário e alimentando sentimentos de ódio e revolta. Durante a Revolução Pernambucana de 1817, destacou-se na repressão ao movimento, impedindo-o de penetrar na capitania da Bahia. No ano seguinte, retornou ao Rio de Janeiro como ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos, cargo que ocupou até o retorno da Corte para Portugal. O conde, entretanto, permaneceu ainda no Brasil até depois de declarada a independência e, só então, retornou à Europa.

[2] ESCOLA DE CIRURGIA DA BAHIA: criada com a chegada do príncipe regente d. João e da corte portuguesa ao Brasil, por carta régia de 18 de fevereiro de 1808 e instalada no Hospital Real Militar da Bahia, antigo prédio do Colégio dos Jesuítas, no Largo do Terreiro de Jesus. O primeiro curso médico e cirúrgico do Brasil, proposto pelo conselheiro José Correa Picanço, cirurgião mór do Reino, tinha duração de quatro anos e oferecia duas cadeiras: cirurgia especulativa e prática, ministrada pelo cirurgião Manoel José Estrela, e anatomia e operações cirúrgicas ministradas pelo cirurgião José Soares de Castro. As aulas teóricas eram realizadas numa das salas do Hospital Militar e as práticas nas enfermarias. De 1808 a 1815, o ensino médico e cirúrgico da Escola abrangia as áreas de anatomia humana (teoria) e fisiologia, patologia e clínica. Concluído o curso, os alunos prestavam os exames para cirurgião podendo então tratar da saúde pública na colônia. A carta régia de 29 de dezembro de 1815, expedida pelo conde dos Arcos, então governador-geral da capitania da Bahia, reformou, pela primeira vez, o ensino médico baiano, tendo por base o “Plano dos Estudos de Cirurgia” (1813) de autoria do médico da Real Câmara de d. João VI, Manuel Luiz Álvares de Carvalho. Com a reforma, a Escola passou a denominar-se Academia Médico-cirúrgica. O curso de cirurgia, com duração de cinco anos, era composto pelas seguintes matérias: 1º ano – Anatomia, Matéria Médica e Química Farmacêutica; 2º ano – Anatomia e Fisiologia; 3º ano – Higiene, Patologia e Terapêutica; 4º ano – Instruções Cirúrgicas e Operações Obstétricas; 5º ano – Medicina Prática e Obstetrícia. Só poderiam matricular-se aqueles alunos que soubessem ler e escrever corretamente nas línguas francesa e inglesa. Após completarem o quinto ano do curso, os alunos aprovados recebiam a Carta de Cirurgia. Aqueles que quisessem frequentar novamente os últimos dois anos, uma vez aprovados nos exames, recebiam uma nova graduação em cirurgia. Os cirurgiões formados estavam aptos a curar todas as enfermidades nos locais onde não existissem médicos diplomados pelas universidades europeias. Em 17 de março de 1816, por determinação de d. João VI, a Academia Médico Cirúrgica da Bahia foi transferida para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

[3] ESTRELA, MANOEL JOSÉ (1763-1840): nasceu no Rio de Janeiro e realizou seus estudos em Lisboa, onde obteve o título de cirurgião pelo Colégio do Hospital de São José. Foi cirurgião-mor no Hospital Real Militar da Bahia e em 23 de fevereiro de 1808, Manoel José Estrela foi nomeado pelo cirurgião-mor do reino José Correia Picanço professor da cadeira de cirurgia especulativa e prática da Escola de Medicina da Bahia. Durante a reforma da Escola em 1815, continuou como lente do segundo ano, lecionando Fisiologia. Publicou na Bahia, em 1816, uma tradução do compêndio francês “Observações fisiológicas sobre a vida e sobre a morte...” de Xavier Bichat, médico do hospital de Paris.

[4] LENTE: professor catedrático, termo que denominava os professores das chamadas cadeiras grandes, isto é, os professores dos ensinos superiores. De acordo com os estatutos da Universidade de Coimbra de 1653, caberia aos lentes preservar todo o conteúdo das grandes áreas de ensino, apresentado e lido aos alunos, sem nenhuma espécie de questionamento. As aulas deveriam ser ministradas em latim, com os professores de barrete (espécie de chapéu de tecido) na cabeça – com pena de multa para os que não o usassem. Com a reforma pombalina da Universidade, em 1772, os novos estatutos reformularam a atuação dos lentes. Apesar das grandes áreas de ensino continuarem demarcadas, abriu-se o caminho do professor para o acompanhamento do aluno, através da indicação de bibliografia e explicação dos conteúdos, em uma tarefa levada mais à compreensão que a memorização. No Brasil, sua atuação iniciou-se com a criação das primeiras instituições de ensino superior (Academias Médicas e Militares) a partir da vinda da corte portuguesa em 1808.

[5] CARVALHO, MANOEL LUÍS ÁLVARES DE (1751-1824): médico baiano, diplomou-se pela Universidade de Coimbra em 1782, foi membro do conselho do príncipe d. João e médico honorário da Real Câmara. Retornou ao Brasil com a família real, em 1808, tendo sido nomeado médico da Real Câmara e diretor dos Estudos de Medicina e Cirurgia da Corte e Estado do Brasil. Em 1813, elaborou o “Plano dos Estudos de Cirurgia”, que deu origem à reforma dos cursos médico-cirúrgicos das Escolas de Cirurgia Rio de Janeiro e da Bahia. A congregação de lentes da então Academia Médico-Cirúrgica da Bahia conferiu, em 1816, a Manoel Luiz o título de fundador daquela Academia. Foi diretor da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro de 1813 a 1820.

[6] SANTA CASA DA MISERICÓRDIA: irmandade religiosa portuguesa criada em 1498, em Lisboa, pela rainha Leonor de Lencastre. Era composta, inicialmente, por cem irmãos, sendo metade nobres e os demais plebeus. Dedicada à Virgem Maria da Piedade, a irmandade adotou como símbolo a virgem com o manto aberto, representando proteção aos poderes temporal e secular e aos necessitados. Funcionava como uma organização de caridade prestando auxílio aos doentes e desamparados, como órfãos, viúvas, presos, escravos e mendigos. Entre as suas realizações, destaca-se a fundação de hospitais. Segundo o historiador Charles Boxer, eram sete os deveres da Irmandade: “dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; visitar os doentes e presos; dar abrigo a todos os viajantes; resgatar os cativos e enterrar os mortos” (O império marítimo português. 2ª ed., Lisboa: Edições 70, 1996, p. 280). A instituição contou com a proteção da Coroa portuguesa que, além do auxílio financeiro, lhe conferiu privilégios, como o direito de sepultar os mortos. Enfrentando dificuldades financeiras, a Mesa da Misericórdia e os Hospitais Reais de Enfermos e Expostos conseguiram que a rainha d. Maria I lhes concedesse a mercê de instituir uma loteria anual, através do decreto de 18 de novembro de 1783. Cabe destacar que os lucros das loterias se destinavam, também, as outras instituições pias e científicas. Inúmeras filiais da Santa Casa de Misericórdia foram criadas nas colônias do Império português, todas com a mesma estrutura administrativa e os mesmos regulamentos. A primeira Santa Casa do Brasil foi fundada na Bahia, ainda no século XVI. No Rio de Janeiro, atribui-se a criação da Santa Casa ao padre jesuíta José de Anchieta, por volta de 1582, para socorrer a frota espanhola de Diogo Flores de Valdez atacada por enfermidades. A irmandade esteve presente, também, em Santos, Espírito Santo, Vitória, Olinda, Ilhéus, São Paulo, Porto Seguro, Sergipe, Paraíba, Itamaracá, Belém, Igarassu e São Luís do Maranhão. A Santa Casa constituiu a mais prestigiada irmandade branca dedicada à ajuda dos doentes e necessitados no Império luso-brasileiro, desempenhando serviços socais como a concessão de dotes, o abrandamento das prisões e a organização de sepultamentos. Os principais hospitais foram construídos e administrados por essa irmandade, sendo esta iniciativa gerada pelas precárias condições em que viviam os colonos durante o período inicial da ocupação territorial brasileira. A reunião do corpo diretivo da irmandade da Santa Casa da Misericórdia, responsável pela administração desta associação, era chamada Mesa da Misericórdia.

[7] MIASMAS IMPUROS: no século XVIII e ao ainda no século XIX, uma corrente da medicina viria a associar a ocorrência das epidemias a certas impurezas existentes no ar. Acreditava-se que os miasmas eram vapores nocivos invisíveis que corrompiam o ar e atacavam o corpo humano. Esses miasmas possuíam várias origens: exalavam de pessoas ou animais doentes; de dejetos ou substâncias em decomposição e dos terrenos pantanosos. As medidas profiláticas adotadas a partir dessa orientação visavam a impedir a propagação do mau odor, o que preveniria ou evitaria a ocorrência de doenças e epidemias. Havia um embate entre os chamados infeccionistas que defendiam que a origem das moléstias advinha do meio/local e aqueles que acreditavam no contágio, entendido como contato entre indivíduos, o modo de propagação das epidemias, admitindo a possibilidade da importação das doenças. Diversas medidas de melhorias e modificações de cidades e do espaço urbano, como abertura de ruas, aterramento de pântanos, derrubada de morros, foram orientadas pela necessidade de eliminação desses miasmas que seriam os causadores das epidemias que assolavam periodicamente as populações das cidades e do interior do Brasil.

[8] CASTRO, D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E (1752-1817): 1o conde de Aguiar e 2o marquês de Aguiar, era filho de José Miguel João de Portugal e Castro, 3º marquês de Valença, e de Luísa de Lorena. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passou a vice-rei do Estado do Brasil, cargo que exerceu até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal e tornou-se presidente do Conselho Ultramarino, até a transferência da corte para o Rio de Janeiro. A experiência adquirida na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para a Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, pasta em que permaneceu até falecer. Durante esse período, ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário e de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar e se casou com sua sobrinha Maria Francisca de Portugal e Castro, dama de d. Maria I. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

Vacinação contra bexigas

Carta do visconde de Anadia a d. Fernando José de Portugal cobrando o cumprimento da vacinação contra a moléstia de bexigas nos domínios ultramarinos. Menciona a experiência do governador de Moçambique no que diz respeito à inoculação, além de outros exemplos como o do capitão do navio cargueiro que vacinava a escravaria e obtinha bons resultados. Por fim solicita a d. Fernando que consiga persuadir os habitantes e que faça da vacinação uma prática na colônia.



Conjunto documental: Capitania do Rio de Janeiro
Notação: caixa 746, pct. 01
Datas-limite: 1700-1808
Título do fundo: Vice-reinado
Código do fundo: D9
Argumento de Pesquisa: Epidemias
Data do documento: 26 de abril de 1804
Local: Palácio de Queluz (Portugal)
Folha(s): 88

 

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,

Tendo o príncipe regente nosso senhor ordenado aos governadores e capitães-generais dos seus Domínios Ultramarinos[1] por aviso de 4 de Outubro de 1802, que procurassem introduzir nas suas respectivas capitanias o uso da inoculação das bexigas[2], e dessem conta dos efeitos que produzisse, participou em consequência desta ordem, o atual governador e capitão-general de Moçambique[3], que naquela capital e distritos adjacentes há tanto conhecimento da inoculação e da sua utilidade, que esta prática é muito usual, e que estão os seus habitantes tão familiarizados com ela, que uns aos outros se inoculam, depois do que principiam a sentir as bexigas, mesmo trabalhando sem experimentarem mau efeito, pois que de cem inoculados apenas morre um, e que ultimamente se observou que o capitão de um navio francês inoculou com a vacina[4] duzentos e cinquenta e seis negros, de que constava a carregação, e que só lhe morrera um, e que finalmente todos os carregadores ali inoculam as suas escravaturas, do que tem tirado muita vantagem. A vista deste exemplo, de que Vossa Excelência se pode servir, para inculcar aos habitantes dessa capitania a utilidade da inoculação, espera Sua Alteza Real que V.Exª. os persuada a adaptarem este preservativo de um dos maiores flagelos da humanidade.

Deus guarde a V.Exª. Palácio de Queluz em 26 de abril de 1804

Visconde de Anadia[5]

Sr. Dom Fernando José de Portugal[6]

 

[1] DOMÍNIOS ULTRAMARINOS: ultramar era o termo também utilizado para se referir aos domínios ultramarinos, designava as possessões de além-mar, as terras conquistadas e colonizadas no período da expansão marítima e comercial europeia, ocorrida a partir do século XV. No caso português, as possessões coloniais espalhavam-se pelos continentes africano, americano e asiático, tendo como principais cidades Luanda e Benguela na África, Macau e Malaca na Ásia, e Rio de Janeiro e Salvador na América.

[2] BEXIGA(S): doença infectocontagiosa, causada por vírus, também conhecida como varíola. A varíola não tem cura e foi uma das doenças mais devastadora ao longo da história, até sua erradicação no século XX. No período colonial, as epidemias da doença foram um dos principais fatores de dizimação da população indígena que creditava o contágio à água do batismo usada pelos padres jesuítas. O primeiro grande surto que se tem notícia ocorreu na Bahia em 1562 e 1563, matando milhares de índios Tupinambá e dizimando aldeias inteiras. Além da epidemia que se alastrou entre as décadas de 60 e 80 do século XVI, outros surtos epidêmicos ocorreram no Rio de Janeiro já no século XVII, sendo o mais notável o de 1655 que atingiu, também, Bahia e Pernambuco. Associa-se o desenvolvimento da doença no Brasil ao tráfico atlântico de escravos oriundos da África. Em 1798, realizou-se no Rio de Janeiro a primeira vacinação contra a doença no país, ainda com o método da inoculação do pus da varíola. Somente em 1811, com a criação da Instituição Vacínica, é adotada a vacina jenneriana, com a linfa vacínica, extraída do úbere das vacas. A instituição criada no Rio de Janeiro pelo príncipe regente d. João, como resultado da preocupação com o alastramento da enfermidade, foi entregue aos cuidados e supervisão do intendente-geral da Polícia e do físico-mor do Reino e tinha como alvo principal a população negra cativa. Os escravos vacinados eram mais valorizados para a venda, uma vez que esta era uma doença responsável por grande parte das mortes entre negros. O século XIX também assistiu a grandes epidemias de varíola, sendo notáveis as ocorridas no Ceará, em fins da década de 70, e na cidade do Rio de Janeiro em 1887, quando a doença era responsável por 47% dos óbitos na cidade.

[3] MOÇAMBIQUE: país localizado na costa sudeste da África, banhado pelo oceano Índico. Os primeiros povos a habitarem a região, entre os séculos I e V, eram grupos de língua banta que vieram em ondas migratórias pelo vale do rio Zambeze e fundaram comunidades basicamente agrícolas. Ao longo da Idade Média as cidades pouco se desenvolveram e pouco delas restou. O comércio costeiro foi dominado inicialmente por persas e árabes que tinham assentamentos pelo litoral e mantinham negócios com o Oriente. A viagem de Vasco da Gama levou os primeiros portugueses a região, em 1498; desde então a hegemonia comercial árabe e persa começa a decair e cede lugar às novas rotas marítimas dos portugueses, vindo da Europa até o Oriente, com passagem pelos entrepostos ao longo da costa africana. Os mercadores portugueses se estabeleceram mantendo boas relações com os reinos que dominavam a região, por meio de acordos ou ocasionalmente por meio da força. A primeira povoação fundada na região de Moçambique foi Sena, em 1530, e depois outras ainda no século XVI, tomando conta da rota entre as minas de ouro e o oceano Índico. Entre os séculos XVII e XVIII os portugueses negligenciaram a ocupação dos territórios, mais envolvidos com a colonização da América, mas chegaram a mandar colonos para Moçambique, que se misturaram com os habitantes da região, estreitando os laços de comércio e agricultura. Portugal controlava as ocupações e os negócios da região a partir da capital do Estado da Índia, Goa, mas a administração não era bem sucedida. Em 1752, o governo pombalino decidiu nomear um governador-geral para o território de Moçambique, visando a melhorar as atividades comerciais, coletar os impostos e manter a colônia. Os principais produtos de interesse da metrópole eram o ouro (principalmente nos séculos XVI e XVII), depois o marfim, produto de alto valor na Europa, mas sobretudo escravos, milhares enviados para o trabalho nas Américas até o ano de 1842, quando o tráfico foi oficialmente proibido – sem considerar o comércio clandestino que seguiu ainda alguns anos. Até meados do século XIX, a presença portuguesa limitava-se a algumas capitanias (os chamados prazos), ao longo do litoral, Moçambique só chegou a ser administrada como uma colônia unificada em finais do Oitocentos. Foi a última colônia portuguesa a conseguir a independência, em 1975.

[4] VACINA: o nome vacina advém de vaccinia, agente infeccioso da varíola bovina que, quando inoculado no organismo humano, assegura imunidade à doença, considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a mais devastadora da história. A vacina antivariólica data de 1749, quando era conhecida também como “vacina jenneriana” em razão do nome de seu inventor, o inglês Edward Jenner (1749-1823). Observando os ordenhadores de animais, Jenner constatou que estes adquiriam resistência à varíola após o contato com animais acometidos por cow-pox (pústula da vaca). O método então empregado baseava-se na injeção da pústula da vaca em pessoas sadias, o que causava nestes, erupções próximas às causadas pela varíola. A partir dessas erupções, extraia-se a “linfa” ou “pus variólico”, moendo a crosta da ferida até transformá-la em pó, que era inoculado em outras pessoas, numa cadeia sucessiva de imunização, denominada vacinação “braço a braço”. Tal técnica veio a substituir a antiga prática de “variolização” que consistia na inoculação de formas benignas da doença com objetivo de imunização, levando em muitos casos o indivíduo à morte. A doença foi trazida para o Brasil tanto por portugueses quanto por africanos e a vacina jenneriana foi introduzida em 1804 pelo Marquês de Barbacena. Foram enviados a Lisboa, um médico, a fim de aprender a técnica, e alguns escravos que foram vacinados e passaram a vacina para outras pessoas ao regressarem ao Brasil. Da Bahia, a técnica se estendeu ao Rio de Janeiro, tornando-se uma prática. No entanto, a vacina humanizada foi criticada porque como atingia a corrente sanguínea, transmitia também outras doenças e perdia sua potencialidade. O desenvolvimento da vacina animal, extraída das pústulas de vitelos sadios inoculados com o vírus vacínico, aconteceu no Brasil em 1887 com a criação do Instituto Vacínico Municipal, na rua do Catete, no Rio de Janeiro, que distribuía para as outras províncias. Logo depois, foram criados institutos em São Paulo, Bahia, Ceará, Pará e Pernambuco, diminuindo muito os problemas relacionados as doenças contagiosas. Antes disso, as lâminas e tubos capilares com o pus vacínico eram enviados ao Brasil pela Inglaterra. Porém isso não acontecia todos os meses como deveria e as vacinas mostraram-se enfraquecidas após a quarta ou quinta inoculação, produzindo vacinas nulas. A resistência à vacinação foi uma constante no século XIX, levando algumas câmaras municipais a decretarem a obrigatoriedade desta em épocas de epidemia. A população associava a inoculação à transmissão de doenças como tuberculose, sífilis, erisipela e temia que a vacina animal transmitisse as características e doenças do animal para o homem.

[5] MELO SOTTOMAYOR, JOÃO RODRIGUES DE SÁ E (1755-1809): filho de Aires de Sá e Melo e de d. Maria Antônia de Sá Pereira e Meneses, participou ativamente do cenário político luso-brasileiro. Entre as funções e distinções que possuiu, destacam-se: senhor donatário da vila de Anadia (1787); comendador de São Paulo de Maçãs; alcaide-mor de Campo Maior; membro do conselho da Fazenda e ministro plenipotenciário em Berlim. Em reconhecimento aos serviços prestados pelo seu pai como diplomata e secretário de Estado adjunto do marquês de Pombal e depois secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, d. Maria I concedeu-lhe o título de visconde de Anadia em 1786, sendo agraciado com o título de conde pelo príncipe regente d. João em 1808. Transferiu-se junto com a Corte portuguesa para o Brasil em 1808 e exerceu o cargo de secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos até sua morte em 1809.

[6] CASTRO, D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E (1752-1817): 1o conde de Aguiar e 2o marquês de Aguiar, era filho de José Miguel João de Portugal e Castro, 3º marquês de Valença, e de Luísa de Lorena. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passou a vice-rei do Estado do Brasil, cargo que exerceu até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal e tornou-se presidente do Conselho Ultramarino, até a transferência da corte para o Rio de Janeiro. A experiência adquirida na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para a Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, pasta em que permaneceu até falecer. Durante esse período, ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário e de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar e se casou com sua sobrinha Maria Francisca de Portugal e Castro, dama de d. Maria I. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

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