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Quilombos e Revoltas de Escravos

Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 18h22 | Última atualização em Sexta, 03 de Agosto de 2018, 20h17

Viviane Gouvêa
Mestre em Ciencias Politicas UFRJ
Pesquisadora do Arquivo Nacional

O fundo Polícia da Corte do Arquivo Nacional contém uma série de conjuntos documentais que registram os procedimentos de buscas de escravos fugidos, procura e eliminação de quilombos, prisões de escravos pelos motivos mais variados – desordens urbanas, entre as quais a prática do jogo da casquinha e da capoeira, assassinatos de senhores, roubos e desacato à autoridade –, formando um amplo conjunto de informações de interesse crucial para o estudo de como os escravos negros – africanos ou nascidos no Brasil – demonstravam a sua não-submissão à condição que lhes era imposta.

As formas de resistência e insubordinação variavam enormemente, e nem sempre surgiam como um ato deliberado, planejado ou organizado de rebeldia mas, como em alguns casos de crimes de assassinato ou roubo, como manifestação individual e, às vezes, espontânea de recusa à situação de violência e exploração a que estavam submetidos. Na verdade, os traços e manifestações de inconformismo e rebeldia assumiam tantas formas que é difícil abordá-las como se fossem um todo coerente. Portanto, individuais ou coletivas, organizadas ou sob a forma de explosões espontâneas momentâneas, abertas ou sub-reptícias, tais manifestações expressavam as diferenças e variações presentes nas relações entre os cativos e seus senhores, entre os diversos grupos de cativos e entre as atividades econômicas nas quais se inseriam.

Quando se levanta a discussão em torno de resistência ou insurreição escrava de uma maneira geral, a primeira palavra que vem à cabeça dos brasileiros é “quilombo,” muitas vezes especificada como “quilombo dos Palmares.” Considerado o maior e mais longevo dos quilombos brasileiros, o quilombo dos Palmares, contudo, não constitui o padrão para estas aglomerações de escravos fugidos que, em sua maioria, dependendo da época e do lugar, poderiam ser descritos como aglomeração de, no mínimo, apenas 6 pessoas. Vários deles não passavam de acampamentos em que poucos indivíduos sobreviviam à custa de roubos e furtos a viajantes.

Tais aglomerações ocorreram nas Américas onde quer que houvesse escravidão em sistema de grandes lavouras: palenques, ou cumbes, na América espanhola; maroons, na América inglesa; e grand marronage, na América francesa. No Brasil, foram adotados termos africanos para definir as aglomerações: kilombo (em banto, fortaleza), e mukambu (na língua quimbundo).
Os quilombos não eram um enclave isolado da sociedade e, exatamente por raramente sobreviver de forma autônoma, em geral se localizavam em áreas não muito distantes das regiões habitadas em que atividades econômicas eram desenvolvidas, embora obviamente se instalassem em pontos propícios para ocultação e fuga rápida, caso fosse necessário. Representavam um mundo dentro do universo mais amplo que era a sociedade escravista colonial e com esta mantinham uma relação complexa que incluía não apenas roubos de fazendas e organizações de fugas, mas trocas de produtos roubados ou gêneros alimentícios produzidos nos quilombos por outros gêneros necessários como favores, acoitamento, transporte e outros tipos de facilitação que comerciantes e homens pobres livres poderiam fornecer.

Embora fosse ameaça latente ao modo de vida então dominante – não apenas devido aos roubos, assaltos e fugas, mas exatamente pela interação e proximidade com as “franjas” da sociedade legal, que representavam um desafio à ordem vigente – a existência de agrupamentos de escravos fugidos “não necessariamente significava um estado de guerra sem fim” entre estes e os núcleos de povoamento e/ou de produção em torno dos quais os quilombos se formavam – como afirma Flávio dos Santos em Histórias de Quilombolas[1] –, até porque a existência destas aglomerações chegava a ser endêmica em muitos lugares, não só no período colonial, mas no Brasil Império também.

Pode-se ter uma noção tanto das estratégias de combate aos quilombos como das estratégias de sobrevivência destes em alguns ofícios do fundo Polícia da Corte, em especial os códices 323, 326, 327, 329, 403. Uma das questões específicas colocadas pela intendência de polícia diz respeito ao papel das tabernas e taberneiros na sobrevivência de negros fugidos e quilombolas, acusados muitas vezes de apoiarem os foragidos em troca de gêneros que estes lhes forneciam. Tentava-se controlar o horário de funcionamento destas tabernas, assim como sua localização – sendo aconselhado, por exemplo, que tais estabelecimentos se instalassem nas estradas gerais, onde seriam úteis aos viajantes de fato, e não aos fugitivos.

De fato, uma série de ofícios do fundo cita as tabernas também como ponto de encontro de negros e pardos, libertos ou não, alguns deles em fuga ou vindos de quilombos, onde muitas vezes eram acusados de desordem e manifestações impróprias – leia-se: dança e música. Os “batuques” de que eram acusados eram vistos, muitas vezes, como elemento de união de negros de variadas origens, que de outra forma não encontrariam oportunidade ou espaço para partilhar experiências festivas e culturais.

Os “batuques” incluíam práticas religiosas de origem africana, mas também podiam se referir apenas a música e dança. Assim, expressões culturais acabavam por tornar-se um elemento de resistência, na medida em que muitas vezes eram encaradas pelas autoridades e sociedade branca em geral como um desafio ou desrespeito às tradições dominantes, além de representar um momento oportuno de encontro entre indivíduos geralmente afastados por antigas rixas e rivalidades originadas dos conflitos étnicos na África. Uma dessas manifestações ganhou especial importância no cenário urbano, onde a relação do escravo com seu senhor e com o trabalho apresentava peculiaridades que tornavam a resistência, coerentemente, um pouco diferente daquela que ocorria nas áreas rurais: a capoeira.

A fuga permanente, por exemplo, não era um expediente tão utilizado na cidade, embora fosse comum o “sumiço” de um escravo por alguns dias, em especial no caso dos “escravos ao ganho,” que usufruíam uma liberdade de movimentos maior. No caso da capoeira, é difícil precisar quando e como ela surgiu, mas sabe-se que por volta de 1810 já era “moda” entre os jovens escravos e, poucos anos depois, uma das principais dores de cabeça das autoridades da corte encarregadas de zelar pela ordem pública.
A capoeira podia ser praticada como luta, dança, brincadeira ou passatempo. Perigosa, representava uma ameaça não apenas por causa dos constantes enfrentamentos entre grupos de capoeiras e forças de repressão, mas por ser uma afronta à população, uma vez que fazia das ruas da cidade palco para que uma população escrava – que explodira no Rio de Janeiro no início do século XIX – exibisse abertamente e com desenvoltura a sua presença e capacidade de se divertir, brigar e resistir.

Nas ruas do Rio de Janeiro, não eram raros apenas os enfrentamentos entre a guarda – chamados “morcegos” pelos negros – e os escravos e forros, tanto pela prática da capoeira como por outras práticas consideradas “ilegais” como o “jogo da casquinha,” denominação genérica de jogos de azar praticados pela população negra nas ruas da cidade. As brigas entre grupos rivais de escravos, ou forros, geralmente relacionados à capoeira, também ocorriam com freqüência e suscitavam igual preocupação por parte das autoridades.

Rivalidades e questões entre grupos de escravos e entre escravos e libertos eram frutos das diferentes vivências dentro do regime escravista. No caso dos escravos não nascidos no Brasil, mas trazidos da África, esta rivalidade – alimentada e utilizada pelos senhores, como fator de desagregação e controle de rebeliões – era normalmente fruto de guerras tribais, em especial no início do século XIX, com a intensificação destas guerras em algumas regiões da África. Estes africanos viam-se inseridos de forma repentina e violenta em uma situação de repressão e trabalhos forçados que fazia com que eles reagissem de uma forma um tanto diversa daquele que, já tendo nascido escravo no Brasil, não conhecia em primeira mão a experiência da liberdade; João José Reis, em A rebelião escrava no Brasil, explica:

Os afro-brasileiros haviam nascido e se socializado na escravidão e, portanto, ao contrário dos africanos, não tinham um ponto de referência (e de radical contradição) fora dessa experiência [...], eles viviam suas próprias contradições com a escravidão.

Tais diferenças faziam com que, muitas vezes, os escravos nascidos no Brasil se afastassem daqueles que eram trazidos da África. O mesmo acontecia em relação aos libertos e escravos. Stuart Schwartz afirma, em Segredos Internos que,

[...] em várias ocasiões, negros e mulatos livres e, vez por outra, cativos crioulos, procuraram melhorar suas condições ou realizar mudanças políticas mas [...] sem forjar aliança com a população escrava, por vezes distanciando-se o mais possível daquela população.[3]

A repressão aos movimentos e manifestações de rebeldia e insurreição escrava variava não apenas de acordo com a época e o local onde a atividade econômica na qual o escravo se inseria, mas de acordo com a visão que as autoridades tinham de algumas destas manifestações. Um exemplo disso são os “batuques,” por vezes encarados como uma arruaça e uma oportunidade de organização de revoltas dos negros; os modos diferentes de vestir, dançar e cantar eram elementos de divisão entre grupos que já se reconheciam como diferentes. Estes encontros permitiam, também, um momento de distração e folga que representaria um alívio de um dia a dia muito penoso.
Como os quilombos constituíam um problema público e privado – de uma forma mais clara do que as questões relacionadas à desordem urbana causada por “propriedade particular,” ou seja, os escravos capoeiras – a sua repressão expressava esta dualidade. As tropas de busca e destruição incluíam pessoal contratado, e eram comandados por “capitães-do-mato” especificamente trazidos para este fim, e muitas vezes contavam com a valiosa ajuda de negros ou índios. Os proprietários dos escravos fugidos muitas vezes arcavam com as despesas de busca, ou pagavam pela recuperação das suas “peças”, como atesta a correspondência entre autoridades – inclusive o próprio vice-rei - em solo brasileiro, que hoje pode ser consultada no Arquivo Nacional. Esta correspondência pode ser encontrada em especial nos fundos Vice-reinado e Mesa do Desembargo do Paço, enquanto que as providências tomadas pelo poder público em relação aos quilombolas e escravos fugidos em outras capitanias podem ser estudadas nos ofícios da Série Interior.
As diversas maneiras com que os escravos reagiam a sua condição acabam por extrapolar a mera revolta ou insubordinação, inserindo-se em um cenário bem mais abrangente que mesclava elementos culturais e escolhas políticas variadas. A prática da capoeira, por exemplo, de origem ainda controversa, associava-se à prática de jogos de aposta e festas, sendo também forma de luta e defesa não apenas contra os agentes da ordem mas contra grupos rivais. Segundo Líbano Soares, em A capoeira escrava,

seu entorno era a densa cultura urbana forjada por escravos no Rio de Janeiro [...] mais que um fato da resistência escrava, a capoeira informa das transformações étnicas e culturais que envolveram escravos e libertos, africanos e crioulos na cidade colonial, na passagem para a metrópole imperial.[4]

Da mesma forma, as aglomerações de escravos fugidos – quilombos e mocambos – mais do que apenas um meio de proteção física aos fugidos ou tentativa de reproduzir em solo brasileiro o modo de viver da antiga África – apesar da predominância de aspectos africanos, tornaram-se uma nova experiência a abrigar elementos políticos e culturais diversos seguindo uma estratégia muito própria de sobrevivência.
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[1]Gomes, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro (século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993.
[2] Reis, João José. A rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Brasiliense: São Paulo, 1987.
[3] Schwartz, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. Companhia das Letras: São Paulo, 1995
[4] Soares, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: ed. Unicamp-CECULT, 2001

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