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História Natural

Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Segunda, 05 de Fevereiro de 2018, 18h17 | Última atualização em Quinta, 13 de Mai de 2021, 17h47

Cláudia Beatriz Heynemann
Pesquisadora do Arquivo Nacional
Doutora em História Social - UFRJ


Tradução literal da historia naturalis de Plínio, a expressão "história natural" aparece em francês na segunda metade do século XVI, sendo difícil defini-la como disciplina autônoma. O termo história não deve se confundido com uma abordagem diacrônica, não sugere temporalidade, devendo ser compreendido, ainda que não exclusivamente, como descrição dos corpos naturais. Para a Encyclopédie a história natural é parte, com as histórias sacra, eclesiástica, civil, antiga e moderna, da Memória, que, com a Razão e a Imaginação compõem o Entendimento humano.

No setecentos iluminista a história será filosófica, com seus pressupostos universais e racionalistas, em compasso com a física newtoniana. Filosóficas eram também as viagens empreendidas com esse mesmo espírito e que, simultaneamente, viriam desestabilizar a certeza de um mundo de regularidades, com toda uma literatura reveladora da multiplicidade de culturas e sociedades, consumidas com avidez pelo público europeu. A descrição da natureza oferecia então, por meio de desenhos e relatos, um dos capítulos dessas viagens que, diferentemente daquelas empreendidas no Renascimento, não constituíam peregrinação e sim o inventário do mundo natural.

As ciências da natureza dominam o século XVIII. Um de seus pressupostos é, sem dúvida, o da necessidade utilitária, sobretudo no ramo da botânica, o que caminha em conjunto com a necessidade de acumular conhecimento e classificar. Extrai-se da natureza as leis da natureza. Não mais os princípios abstratos, mas uma ciência concreta, cujo método, predominantemente indutivo, é o da observação, da experiência, das tentativas de classificação, avançando, cada vez mais, em um acréscimo assombroso de espécies, detalhes, descobertas, "a vida, a vida imensa, destrói as noções que dela se possuía", diz Paul Hazard.

A possibilidade de reformar as sociedades, através de uma pedagogia das Luzes, de um aprimoramento pelo conhecimento, pela Razão, inseria-se na perspectiva da ciência moderna, incidindo sobre os homens e o meio físico, atuando sobre o mundo, diretamente, a partir do método experimental. O universalismo iluminista integrava os portugueses ao mundo civilizado, e, uma das tarefas desse projeto era o inventário da natureza física da colônia, onde a história natural, como história da natureza, é a sua própria história.

Classificar e ordenar torna-se então imperioso. É o mundo dos gabinetes de história natural, dos jardins botânicos, das coleções, das viagens. Não mais o espaço do "maravilhoso", dos animais mitológicos. O que surpreende é exatamente a própria natureza e suas leis e o maravilhoso, nesse caso, vem dos relatos de outros continentes e ainda, daquilo que se encontra ao alcance da mão: o microscópio revela todo um universo a ser penetrado, ampliando formas vivas. As maravilhas da natureza, do "pequeno mundo" do botânico, do entomologista e do colecionador de pedras, fazem com que o verdadeiro interesse se desloque então para a delicada estrutura dos insetos, ou para as alterações observadas em espécies vegetais.

A história natural, o conhecimento extensivo da natureza, estruturado em sistemas, nomenclatura ou descrição, encontra um lugar relevante no programa reformista pombalino, quando a reforma das instituições e o pacto colonial reafirmado promovem a sua valorização em academias, jardins, gabinetes, expedições. No plano mais evidente, atendia-se ao critério de utilidade da natureza, correspondendo às teses fisiocratas, ao pragmatismo que norteará os modernos na sociedade portuguesa desde o final do seiscentos. Podemos também considerar que mais que isso, o estudo e as práticas relativas à história natural estabelecem nexos entre a história de Portugal e da colônia na época moderna e traçam um outro tempo e geografia para a América portuguesa.

Parte dessa cartografia das viagens pelo interior do continente foi empreendida na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista nascido na Bahia em 1756, formado na Universidade de Coimbra reformada. Entre 1783 e 1792 ele viajou pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, participando de um projeto do governo português, especialmente o Ministério da Marinha e Domínios Ultramarinos, que incluiu o envio de outros naturalistas a Cabo Verde, Angola e Moçambique. Ferreira contou nessa difícil expedição com uma pequena equipe que incluía riscadores (desenhistas), um naturalista e um jardineiro. Em sua passagem pela capitania do Pará, procedeu a remessa de animais e plantas para a metrópole, formando coleções que seriam analisadas e conservadas no Gabinete e Museu de História Natural da Ajuda. Alguns registros dessas atividades estão nos códices da correspondência dos governadores do Pará com a Corte, reunidos no fundo Negócios de Portugal do Arquivo Nacional. Essa série contempla, de modo geral, as diversas iniciativas que se desenvolveram na capitania, no âmbito da história natural. Assim, sob as ordens de d. Francisco de Souza Coutinho, a capitania do Pará foi, nesse sentido, estratégica para a história natural na colônia, sediando o único jardim botânico, que de fato funcionou no período colonial, chamado Horto São José, a partir de 1796, recebendo instruções para aclimatação de plantas indígenas, especiarias e plantas exóticas à região. A iniciativa de criação de jardins botânicos na colônia obedeceu ao enunciado básico da aclimatação de plantas exóticas – indígenas ou, de modo geral, estrangeiras ao Brasil, oriundas também de outras colônias, com o objetivo de implementação de sua cultura aqui ou de sua remessa para Portugal, como se depreende das inúmeras instruções que da metrópole se dirigem aos governos das capitanias.

De Caiena eram recolhidas a canela, pimenta, cravo da índia e árvores frutíferas e da capitania seguiam animais quadrúpedes, pássaros, vivos ou mortos, tal como as sementes e plantas que iam secas ou em viveiros para a Metrópole. Elas carregavam muitas expectativas dos europeus depositadas no Novo Mundo como foi o caso da árvore da fruta-pão, esperança para a fome dos povos. Ou ainda a quina, cinchona officinalis, uma planta medicinal cuja aceitação, na Faculdade de Medicina de Paris do século XVII, como escreveu Jacques Roger, representou, em conjunto com outras teorias, como a da circulação do sangue, acompanhar "passo a passo os modernos". Comportavam, igualmente essas plantas, a possibilidade de responder aos enganos no Oriente, ao lugar periférico que se teria concedido à América portuguesa na versão dos ilustrados do Setecentos.

No desenvolvimento da história natural moderna a botânica seria propedêutica, quer pela maior facilidade na formação de coleções vivas ou secas, quer pelas possibilidades oferecidas pela anatomia vegetal na construção de um sistema classificatório. Também no "reino animal" promoveu-se um colecionismo significativo. Muitas remessas mesclaram os reinos da natureza e diversas coleções de pássaros, quadrúpedes, peixes e outros animais alimentaram os gabinetes de história natural, quando empalhados ou conservados em álcool, enquanto uma grande quantidade de pássaros foi incorporada aos viveiros das reais quintas, compondo, com as folhas de parreiras, o cenário da Corte, em que iriam figurar aqueles capturados pela expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira; um gavião-real, um mutum, dois jacuzes e trinta e sete periquitos. Curiosidade, raridade: esses critérios, talvez, mais do que nas coleções botânicas, foram fundamentais. Atravessando as determinações declaradamente científicas, a curiosidade, "paixão de possuir coisas raras" , como definia a Academia francesa no século XVII, foi dominante entre as autoridades coloniais e seus pares na Europa.
Significando, ao mesmo tempo, uma releitura da expansão e da colonização, sobretudo na América portuguesa, a história natural materializava-se naqueles objetos que deviam ser vistos e que eram, assim, exibidos nos estabelecimentos científicos, nas quintas, jardins e viveiros reais.

A pesquisa sobre história natural e outros temas correlatos no acervo do Arquivo Nacional é extremamente profícua, especialmente a que versa sobre as remessas e formação de coleções de história natural na colônia, por meio da correspondência entre autoridades, sobretudo da Secretaria de Estado do Brasil. Mas não só: memórias de ilustrados luso-brasileiros como o do códice 807; códices da Inconfidência mineira; documentos da Junta da Fazenda da província de São Paulo; da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, das séries Guerra e Interior, do fundo Negócios de Portugal que trazem descrições e experiências com sementes e plantas, referências à nomenclatura e ao sistema de classificação de Lineu, listas de animais transportados em navios, formas de conservação, acondicionamento e disposição das remessas e coleções preparadas, publicações sobre a história natural e toda uma escrita que descreve o intenso movimento de produção de uma nova paisagem na colônia.

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