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Alimentação na américa Portuguesa

Carta de lorde Strangford ao conde de Linhares

Publicado: Terça, 06 de Fevereiro de 2018, 19h14 | Última atualização em Sexta, 30 de Abril de 2021, 18h06

Cópia da carta de lorde Strangford, representante da coroa britânica no Brasil, ao conde de Linhares, d. Rodrigo de Souza Coutinho, na qual solicita plenos poderes a Guilherme Tidoe, para que este possa comprar, criar e matar 240 cabeças de gado e 600 de carneiro, a fim de fornecer a carne necessária ao consumo dos ingleses que residiam no Rio de Janeiro.

 

Conjunto documental: Generalidades
Notação: IJJ1 702
Datas-limite: 1811-1811
Título do fundo: Série Interior - gabinete do ministro
Código do fundo: A6
Argumento de pesquisa: alimentação
Data do documento: 26 de novembro de 1811
Local: Rio de Janeiro
Folha (s): 36-37

Leia o documento na íntegra

 

Meu caro conde de Linhares[1]

 

O portador desta carta é o homem a quem os ingleses aqui residentes escolheram para lhes darem carne. Eu rogo a vossa excelência que se lembre quanto é essencial para os ingleses a boa carne assada[2]. Sem ela nós não podemos viver. Portanto se vossa excelência não nos socorre, morremos de fome, e então adeus comércio[3].

O que peço a vossa excelência, seriamente, é um aviso para dar poder a este homem, a fim de obrar conforme as expressas estipulações da nossa convenção; isto é para matar 240 cabeças de gado[4], e 600 de carneiro, e comprá-los no sítio em que quiser, sem algum empecilho do Rangel. Este homem Guilherme Tidoe está pronto a pagar os direitos no primeiro dia de cada mês, se for assim necessário. Ele comprou um pedaço de terreno, onde intenta engordar o gado à inglesa.

Suplico a vossa excelência da maneira mais viva a dar uma plena execução a nossa convenção sobre a carne de vaca. Tende compaixão dos nossos estômagos, e da carne de defunto do senhor Rangel, libera nos domine. = de vossa excelência = fidelíssimo, e afeiçoado criado e amigo. = Strangford[5].

 

My dear Count de Linhares,

 

The bearer of this letter is the man whom the English residents here have selected to kill meat for them. I beseech your Excellency to recollect how essential good roast beef is to Englishmen. We cannot live without it; therefore if your Excellency does not help us, we must die of hunger, and then, adieu commerce!

Seriously what I ask of your Excellency is an aviso empowering this man to act according to the express stipulations of our agreement, to kill 240 head of cattle, and 600 sheep, and to buy them in the country  where he pleases, without any impediment from Rangel, this man William Tidoe, is ready to pay the duties on the first day of every month, if it should be so required. He has bought a piece of ground where he means to fatten the cattle à l'anglaise.

I beseech you in the most `?] manner to give a full execution to our convention about the beef.

Ayez pitié de nos estomacs, et de la charogne de M. Rangel, Libera nos Domine!

 

De votre

Le très fidèle et `?] et amie

 

Strangford

 

[1] COUTINHO, RODRIGO DE SOUZA (1755-1812): afilhado do marquês de Pombal, este estadista português exerceu diversos cargos da administração do Império luso, como o de embaixador em Turim, ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos (1796-1801) e presidente do Real Erário (1801-3). Veio para o Brasil em 1808, quando foi nomeado secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, permanecendo no posto até 1812, quando faleceu no Rio de Janeiro. D. Rodrigo foi aluno do Colégio dos Nobres e da Universidade de Coimbra, tendo viajado pela Europa e mantido contato com iluministas como o filósofo e matemático francês Jean Le Rond d’Alembert, um dos organizadores da Encyclopédie. Considerado um homem das Luzes, destacou-se por suas medidas visando a modernização e o desenvolvimento do reino. D. Rodrigo aproximou-se da geração de 1790, vista como antecipadora do processo de Independência, e foi o principal idealizador do império luso-brasileiro, no qual a centralidade caberia ao Brasil. Sob o seu ministério, o Brasil adquiriu novos contornos com a anexação da Guiana Francesa (1809) e da Banda Oriental do Uruguai (1811). Preocupado com o desenvolvimento econômico e cultural, bem como com a defesa do território, Souza Coutinho foi um partidário da influência inglesa no Brasil, patrocinando a assinatura dos chamados “tratados desiguais” de que é exemplo o Tratado de Aliança e Comércio com a Inglaterra [ver Tratados de 1810]. Responsável pela criação da Real Academia Militar (1810), foi ainda inspetor-geral do Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico da Ajuda; inspetor da Biblioteca Pública de Lisboa e da Junta Econômica, Administrativa e Literária da Impressão Régia; conselheiro de Estado; Grã-Cruz das Ordens de Avis e da Torre e Espada. Em 1808, o estadista recebeu o título nobiliárquico de conde de Linhares.

[2] CARNE ASSADA: A expressão foi usada como tradução do original em inglês, roast beef – prato típico da culinária inglesa e também de suas colônias preparado com um corte de carne bovina, geralmente lagarto ou contra-filé, assado no forno ao ponto de ficar cozido por fora e malpassado no interior, era fatiado e servido acompanhado de batatas ou legumes cozidos.

[3] COMÉRCIO: o controle do comércio e navegação entre o reino e suas colônias sempre foi uma preocupação do Estado português. Esse comércio era regido pelas convenções do pacto colonial, que reservava o monopólio dos produtos coloniais para a metrópole, embora o contrabando entre as colônias e outros reinos evidencie falhas e brechas no sistema. Tratado como um verdadeiro contrato político, pressupunha uma série de instrumentos político-institucionais para a sua manutenção. Na prática, a Coroa não conseguia reservar esses mercados apenas para si e, desde o século XVII, eram feitas concessões cada vez maiores a aliados históricos, como os ingleses. Essa estrutura seria invertida com a chegada da Corte joanina e a consequente abertura dos portos às nações amigas de Portugal. Eliminava-se o exclusivismo mercantil e essa medida, com efeito, favorecia mais à Inglaterra, que exigiu a manutenção e ampliação de certos privilégios econômicos. A situação de dependência comercial com a Inglaterra seria agravada com a assinatura, em 1810, do Tratado de Navegação e Comércio [ver Tratados de 1810], que estabeleceu uma série de medidas que dariam vantagens a este país sobre outras nações no comércio com o Brasil e Portugal.

[4] PECUÁRIA: a expansão da pecuária foi de grande importância no processo de ocupação do interior do território luso americano e no abastecimento do mercado interno, unindo diferentes áreas geoeconômicas. Considerada pela historiografia tradicional como atividade econômica secundária diante das grandes culturas monocultoras, a pecuária gerou acumulação de volumosos cabedais endógenos e movimentou um importante mercado consumidor interno. Sua introdução no Brasil deu-se no século XVI na capitania de São Vicente, seguindo logo depois para a Bahia. No período colonial, esteve relacionada à produção açucareira, no litoral nordestino, e à mineração, favorecendo a ocupação do interior do Brasil. Devido aos danos que o gado provocava na lavoura, surgiram conflitos entre pecuaristas e plantadores de cana, o que deu origem à carta régia de 1701 que estipulava uma distância de 10 léguas entre as plantações e o pasto. O gado, além de servir para alimentação, também entrava no ciclo produtivo da cana como força de tração e para transporte. Desenvolvida, a princípio, no litoral para abastecer os núcleos urbanos, logo adentrou os sertões. No Nordeste, o gado passou a ser criado solto em pastagens naturais, atingindo as províncias do Ceará, Piauí e Maranhão. No século XVIII, o sertão nordestino alcançou o seu apogeu no desenvolvimento pecuário. Já no sul do Brasil, a criação de bovinos foi desenvolvida, inicialmente, pelos jesuítas, nas missões próximas ao rio Uruguai. No século XVII, os bandeirantes atacaram algumas das reduções jesuítas, o gado foi deixado para trás e passou a se reproduzir naturalmente na região, formando grandes rebanhos selvagens. Logo a atividade verteu-se por toda a região, promovendo a instalação de várias estâncias. No Rio Grande do Sul, estâncias reais foram criadas em 1737 e sesmarias doadas para a criação do gado, sempre no intuito de reforçar a ocupação. Com enorme irradiação espacial, pois ocupava extensas áreas de norte a sul da América portuguesa, a pecuária foi uma atividade constante e diversificada, formada sobretudo por bovinos, mas também suínos e caprinos. Com a abertura dos portos, foi desenvolvida criação do gado inglês – Durham, Hereford, Polled Angus - a fim de fornecer carne necessária ao consumo dos britânicos estabelecidos nas grandes cidades do litoral brasileiro.

[5] SMITH, PERCY CLINTON SYDNEY (1780-1855): Lord Strangford, diplomata, sexto visconde de Strangford, em 1801, foi o enviado britânico que negociou diretamente com o príncipe d. João a proposta de transferência da corte portuguesa para o Brasil. Cumprindo os interesses britânicos, trabalhava secretamente pela independência das colônias espanholas. Negociou, junto ao conde de Linhares, os tratados de 1810, também conhecidos como tratado/convênio Linhares-Strangford. Por sua constante intromissão em assuntos de administração da colônia, perdeu prestígio junto ao príncipe regente, sendo nomeado, em março de 1817, para servir em Estocolmo como representante da coroa britânica. O cônsul geral Sir Henry Chamberlain substituiu-o no posto interinamente junto a d. João VI. Dado à literatura, chegou a publicar, em 1803, um livro com traduções para o inglês de poemas de Luís de Camões. Deve-se também à ação de Lord Srangford a doação por d. João VI de um terreno na Gamboa onde foi construído o cemitério dos ingleses onde eram sepultados cidadãos britânicos.

 

 

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