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Sociedade do Açúcar

Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 16h08
A Sociedade do Açúcar

Renata William Santos do Vale
Mestre em História Social da Cultura - PUC-Rio
Pesquisadora do Arquivo Nacional

Meu avô me levava sempre em suas visitas de corregedor às terras de seu engenho. Ia ver de perto os seus moradores, dar uma visita de senhor nos seus campos. O velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões de seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem. Andávamos muito nessas suas visitas de patriarca.
`...]
As terras do Santa Rosa andavam léguas e léguas de norte a sul. O velho José Paulino tinha esse gosto: o de perder a vista nos seus domínios. Gostava de descansar os olhos em horizontes que fossem seus. Tudo o que tinha era para comprar terras e mais terras. Herdara o Santa Rosa pequeno, e fizera dele um reino, rompendo os seus limites pela compra de propriedades anexas. Acompanhava o Paraíba com as várzeas extensas e entrava de caatinga adentro. Ia encontrar as divisas de Pernambuco nos tabuleiros de Pedra de Fogo. Tinha mais de três léguas, de estrema a estrema. E não contente de seu engenho possuía mais oito, comprados com os lucros da cana e do algodão. Os grandes dias de sua vida, lhe davam as escrituras de compra, os bilhetes de sisa que pagava, os bens de raiz, que lhe caíam nas mãos. Tinha para mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção. Senhor feudal ele foi, mas os seus parias não traziam a servidão como um ultraje. (José Lins do Rego, Menino de engenho, p. 65-66 e 103-104)[1]

Começo pedindo licença aos leitores para iniciar este comentário com uma citação um tanto longa, mas que oferece a oportunidade de refletirmos sobre a sociedade açucareira colonial, e sobre o papel desse doce produto para a história mais antiga do Brasil. José Lins do Rego (1901-1957), em seu romance de caráter autobiográfico, Menino de engenho (1932), narrava as peripécias de um menino criado num engenho do Nordeste brasileiro no início do século XX. Impressiona, no vocabulário de sua descrição da fazenda e do avô, o predomínio de certo ‘tom colonial', no qual o "velho" José Paulino era uma personificação do antigo senhor de engenho (atualizado na figura de um coronel), dono de "domínios" que se estendiam por "léguas e léguas", e "tinha para mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção". Essas descrições, do engenho, seus personagens e da vida cotidiana dão o tom e tecem a trama do romance, remetendo a um passado colonial ainda muito presente na virada do oitocentos para o novecentos, principalmente no interior e no Nordeste, no qual o açúcar ainda dá vida a uma parcela da sociedade que depende dele.

As atividades ligadas ao açúcar praticamente definiram a economia colonial e nortearam os estudos sobre a história desse período. A vida cotidiana girava em torno dos engenhos e do modo de viver que emanavam, e os vínculos sociais foram se definindo nesses espaços, nos quais público e privado se misturavam, e que agregavam colonizadores, colonos e colonizados em torno das relações de trabalho.

Os escritos historiográficos do século XIX, elaborados por cronistas, letrados e historiadores, por fim, e os escritos dos viajantes e exploradores, desde o XVIII, apontam para a formação de uma sociedade do açúcar nos primeiros séculos do período colonial, ou da história mais antiga do Brasil.[2] Apesar de os historiadores apresentarem uma narrativa linear do tempo e uma periodização que privilegia os acontecimentos políticos, na história da colônia imperavam os engenhos como estruturas econômicas, e os senhores, regendo a vida nas vilas e cidades que surgem em torno das unidades açucareiras.[3] É o açúcar que dá o primeiro grande impulso para a ocupação efetiva e colonização do Brasil, sendo o principal produto no comércio com a metrópole durante mais de um século, não perdendo, entretanto, sua importância no cenário econômico mesmo em épocas de prosperidade de outras culturas e atividades, como o período aurífero e do café, por exemplo.

É durante a primeira metade do século XX que os estudos sobre a colônia ganham fôlego e novos olhares. É a partir de trabalhos de historiadores como Capistrano de Abreu[4] e Caio Prado Júnior que a história colonial começa a ser escrita em outro estilo de narrativa, menos linear e política, e mais temática e com ênfase na esfera socioeconômica.

Essa historiografia, representada aqui pelos trabalhos de Caio Prado, aplicou o conceito dos ciclos econômicos ao período colonial, no qual estes se sucederiam e imprimiriam o sentido da colonização e das relações comerciais entre colônia e metrópole. Prado ainda sistematizou os estudos sobre o sistema de agricultura colonial definido como plantation, ancorado nos grandes latifúndios monocultores explorados por mão de obra escrava, principalmente de origem africana, descrevendo um ‘modo de produção colonial'.[5] Em contraponto, por volta de meados do novecentos, novos olhares sobre a sociedade açucareira colonial permitiram interpretações mais diversas, de cunho cultural e sociológico, que ficaram célebres entre os estudos brasileiros, como as encontradas na vasta obra de Gilberto Freyre. Esse autor se ocupou em descrever e analisar a vida dos habitantes do engenho, senhores e escravos, suas relações de poder e negociação, e com o meio, produzindo uma interpretação do cotidiano e da cultura surgida naqueles espaços. Essa corrente de pensamento acabou influenciando como muitos brasileiros passaram a se ver, interpretar sua cultura e expressá-la, de certa forma refletida no Menino de engenho, de José Lins do Rego, livro dedicado, entre outros, ao próprio Gilberto Freyre.[6]

Mais recentemente, dois historiadores que deram significativas contribuições para uma história do açúcar no Brasil foram Evaldo Cabral de Mello e Stuart Schwartz, tratando respectivamente de Pernambuco e Bahia. No primeiro caso, Mello analisa a época da dominação holandesa no Nordeste e avalia o impacto da invasão e dos tempos de guerra sobre a "açucarocracia" de Pernambuco.
As guerras holandesas foram inegavelmente guerras do açúcar, não apenas no sentido, que é o geralmente posto em relevo, de guerras pelo açúcar, isto é, pelo controle das suas fontes brasileiras de produção, mas também no sentido `...] de guerras sustentadas pelo açúcar, ou antes, pelo sistema socioeconômico que se desenvolveu no Nordeste com o fim de produzi-lo e exportá-lo para o mercado europeu.[7]

O trabalho pioneiro de Schwartz[8] dá, ao mesmo tempo, um panorama bastante completo do engenho como estrutura produtiva e das diversas etapas que envolviam a fabricação do açúcar, desde o plantio da cana até o comércio, e uma análise do dia a dia e da dinâmica interna das propriedades açucareiras, na perspectiva dos senhores, mas também dos trabalhadores livres e escravos, tratando de temas como escravidão e família. E para além, identifica as raízes das relações de dominação, dependência e violência na sociedade brasileira desde os primórdios da ocupação do território, entre senhores, escravos e homens livres pobres. Schwartz recupera um longo debate na historiografia brasileira, entre marxistas e culturalistas, acerca da natureza das relações econômicas no mundo dos engenhos, se mais marcada por uma orientação capitalista ou mais arcaica, remetendo às estruturas feudais. Embora não rompa abertamente com os grandes modelos explicativos na sua definição da sociedade do açúcar, avança ao evidenciar que as relações entre os diversos mundos - do governo, do trabalho e da desordem - no interior das terras dos engenhos eram muito mais complexas do que o conceito de modo de produção podia dar conta de explicar. E por meio de extensa pesquisa e debate com a historiografia brasileira e estrangeira sobre o açúcar, Schwartz reforça a ideia de que a ordem senhorial vigente ao longo do oitocentos tem sua gestação nessa sociedade que se cria e toma forma em torno das grandes fazendas de cana-de-açúcar e dos engenhos. É no seio da sociedade do açúcar que as hierarquias se definem, que as dependências se afirmam, que o poder dos senhores se consolida, sobre escravos, agregados e sobre a família. E é a partir também desta esfera de poder que os lavradores alçam voos mais altos e começam a integrar os quadros da administração e política coloniais, advogando em causa própria, reforçando e perpetuando o poder e a influência das famílias mais tradicionais da terra.

Em torno desses senhores de engenho, mais tarde senhores de terras e escravos, gravitam a família, os trabalhadores livres pobres assalariados, os pequenos produtores, os agregados, os escravos e até mesmo os párocos, enfim o mundo da casa, do trabalho e também da desordem.[9] É o embrião da classe senhorial que consolidará o Estado e o Império brasileiros em meados do século XIX, processo estudado por Ilmar Mattos no Tempo saquarema.[10] E como Schwartz bem define: "O engenho era um espelho e uma metáfora da sociedade brasileira".

O açúcar no acervo do Arquivo Nacional
O acervo do Arquivo Nacional referente ao período colonial apresenta algumas peculiaridades em relação ao que normalmente se espera encontrar na documentação sobre este assunto. Uma primeira característica é a variedade de capitanias envolvidas na produção ou comércio do açúcar, a mais significativa delas o Rio de Janeiro, o que não é inesperado, dado o fato de ter sido capital do Estado do Brasil, corte e sede do Império português depois de 1808, e concentrar boa parte dos órgãos ligados à burocracia que envolvia o comércio do açúcar. Talvez o que chame também a atenção seja a não predominância de Pernambuco na documentação, apesar de essa ser uma região consagrada como açucareira e amplamente retratada na iconografia da época, como as imagens que compõem este tema atestam. Ao mesmo tempo há uma expressiva presença de referências à capitania da Bahia, na produção e no comércio.

Outra particularidade que enriquece as fontes sobre açúcar no Arquivo Nacional é a variedade de fundos nos quais encontramos esse assunto, e a natureza dos documentos, muitos oriundos de inventários post-mortem, como o de Antônio Ribeiro de Avelar,[11] eminente proprietário de terras e escravos da região do vale do Paraíba fluminense, dono de grandes fazendas e engenhos na região, entre eles o engenho do Pau Grande, descrito no arrolamento de propriedades que consta da seção Sala de Aula. O inventário de Avelar nos permite conhecer as diversas casas e instrumentos utilizados no complexo processo de produção, e entrever, em parte, como se fazia açúcar no Brasil colonial. E também nos dá ocasião para compreender o engenho como uma unidade social em torno da qual gravitavam escravos, homens livres e pobres, pequenos proprietários e os mais diversos tipos de agregados, que ajudaram a alçar o senhor do engenho a um status de poder, ditando um modo de vida, influindo na política local e na economia da colônia. Com a morte de Ribeiro de Avelar, a propriedade que ocupava uma vasta extensão da capitania do Rio de Janeiro foi desmembrada em fazendas, ainda assim muito grandes, que de engenhos tornaram-se as primeiras lavouras de café do Brasil já independente.

Outro exemplo, a carta do conde de Resende, vice-rei do Brasil, ao conde de Linhares, d. Rodrigo de Sousa Coutinho,[12] também em Sala de Aula, aponta para as dificuldades na modernização da agricultura e da produção do açúcar em 1798, mesmo em atividades simples, como o uso do arado puxado por bois e a queima das canas moídas nas fornalhas dos engenhos, usadas na fase de cozimento do melado. O processo de produção do açúcar no Brasil variou pouco entre o século XVI e o XVIII, avançando, ainda timidamente, ao longo do XIX. A imensa maioria dos engenhos usava moendas movidas a tração animal ou água, e a adoção da máquina a vapor, ainda que em pequena escala, iniciou-se mais em torno da década de 1850. Um exemplo da introdução da máquina a vapor nos engenhos brasileiros é a carta do conde dos Arcos, d. Marcos de Noronha e Brito, governador da Bahia, ao ministro dos Negócios do Reino, d. Fernando José de Portugal e Castro, marquês de Aguiar,[13] narrando a compra de um exemplar por um dono de engenho da Bahia, que além de importar a máquina da Inglaterra, ainda a mandara vir acompanhada de um maquinista que pudesse operá-la. O próprio governador foi conferir o funcionamento daquela "útil descoberta", e recomenda ao rei que apoie e incentive a introdução da máquina nos engenhos brasileiros, o que representaria um aumento considerável na produção do açúcar, e consequentemente nas receitas para a Real Fazenda.

Finalmente, podemos verificar que a documentação sobre o açúcar no Arquivo Nacional possibilita ao pesquisador interessado neste tema diferentes temáticas e vertentes de análise, desde o cultivo da cana até o comércio do açúcar, e também enseja entrever os elementos que constituíam a vida nos engenhos, dos senhores e daqueles que viviam em torno deles, que formavam uma verdadeira sociedade do açúcar.

[1] REGO, José Lins do. Menino de engenho. 98. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
[2] Entre os viajantes que deixaram preciosos registros da vida nos engenhos e nos sertões brasileiros, podemos destacar: Antonil, com seu Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas... (1711) e Auguste de Saint-Hilaire e suas várias viagens às províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Goiás, em particular a Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1830).
[3] Dois dos mais importantes autores que se dedicaram a escrever a história do Brasil no oitocentos, e que tratam da sociedade açucareira: José Inácio de Abreu e Lima, Compêndio da história do Brasil (1843, 2 v.); e Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil (1854, 3 v.).
[4] ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial. 7. ed. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Publifolha, 2000.
[5] PRADO JR, Caio. História econômica do Brasil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1949; e Formação do Brasil contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1957.
[6] Na vasta obra de Gilberto Freyre, destacamos Casa Grande & Senzala (51. ed. São Paulo: Global, 2003) e Sobrados e mocambos (15. ed. São Paulo: Global, 2004).
[7] MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 12.
[8] SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
[9] FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1997.
[10] MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: Access, 1994.
[11] ARQUIVO NACIONAL. Inventário de Antônio Ribeiro de Avelar. Inventários, caixa 1.135, pct. 9606. Pati do Alferes, 1796.
[12] ARQUIVO NACIONAL. Carta do conde de Resende, d. José Luís de Castro, para d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Secretaria de Estado do Brasil, códice 69, v. 8. Lisboa, 12 de novembro de 1798.
[13] ARQUIVO NACIONAL. Carta do conde dos Arcos, governador da Bahia, para o marquês de Aguiar, ministro dos Negócios do Reino. Série Interior, IJJ9 324, doc. 36. Bahia, 2 de abril de 1815.

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