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Alimentação na américa Portuguesa

Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 16h17
História da alimentação na América portuguesa

Leila Mezan Algranti
Universidade Estadual de Campinas


O estudo da alimentação desponta na historiografia de forma mais sistematizada no final dos anos 1960, vinculado à escola dos Annales e sua proposta de interdisciplinaridade. Foi aprofundado pela Nova História, quando se observou um crescente interesse pelos estudos sobre o cotidiano, a vida privada, a transmissão dos saberes e tantas outras esferas da vida material, social e econômica, nas quais a alimentação ganhou destaque [1]. Como disse Fernand Braudel: "A vida material são os homens e as coisas, as coisas e os homens." Para Braudel, estudar a alimentação, a habitação, a moda, em suma, tudo aquilo que o homem utiliza, é uma maneira de valorizar sua existência cotidiana. Somente nos anos 1990, contudo, é que poderíamos dizer que a alimentação deixou de ser um tema complementar e adjacente na história para se tornar um campo de estudos específicos [2].

Nesse novo campo - já que eram novas tanto as abordagens como as fontes - abriu-se um leque muito diversificado de objetos de estudo, tratando das mais distintas sociedades em termos de tempo e de espaço, e que abriga desde a dieta e a culinária, e os hábitos à mesa, até os equipamentos, os diferentes modos de fazer e a circulação dos produtos. A história da alimentação contempla ainda o estudo de determinados alimentos e comidas, como aqueles dedicados ao pão, à farinha de mandioca, ao tomate, à batata, ou à aguardente e ao vinho, bem como o de segmentos específicos, como, por exemplo, as bebidas, os temperos e as carnes. Por outro lado, se no início eram os níveis de calorias e consumo de alimentos o que mais interessava aos historiadores que se detinham na economia, atualmente chamam a atenção, para aqueles que se debruçam sobre a cultura, o valor simbólico dos alimentos, as sociabilidades em torno da comida e as práticas alimentares. A história da alimentação apresenta, portanto, uma dimensão de análise tanto material como imaterial.

Na historiografia sobre a América portuguesa, o tema da alimentação não é exatamente novo, pois foi contemplado em estudos clássicos, como os de Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Sergio Buarque de Holanda [3]. Com ênfases distintas, esses autores abordaram a questão em termos do consumo interno de alimentos, da produção de víveres ou no que toca aos produtos para exportação. Entre os anos de 1970 e 1980, porém, mesmo se tratando de um aspecto fundamental para a sobrevivência dos colonos, o tema praticamente se retirou da pauta dos historiadores da Colônia, pois o debate historiográfico privilegiou os modos de produção econômica [4]. Na década de 1990, a alimentação voltou a interessar aos historiadores, sendo abordada em vários estudos dedicados a outras temáticas sobre a América portuguesa. Mas é a partir dos anos 2000 que se observa um crescente interesse pelo assunto, o qual se expressa em estudos acadêmicos específicos, como monografias, dissertações e teses [5].

Embora o termo "alimentação" abrigue mais do que meramente "comida", não se pode negar que a questão do consumo de alimentos e a preocupação com o abastecimento das vilas e cidades tenham sido uma tônica bastante presente na documentação colonial. A correspondência de governadores e vice-reis, por exemplo, está repleta de dados importantes para os historiadores da alimentação, quer seja sobre a carestia de alimentos ou sobre o intercâmbio de produtos entre as várias capitanias, ou entre essas e as demais partes do Império português. Afinal, desde o início da colonização, a circulação de produtos esteve na base do processo de conquista e povoamento da América portuguesa. A transplantação e aclimatação de plantas e animais de criação entre os dois lados do Atlântico foi uma constante entre os séculos XVI e XIX, e envolveu tanto saberes específicos, como técnicos especializados.

Os mercadores, contudo, não trocavam apenas mercadorias e dinheiro, mas também usos e costumes referentes aos modos de cozinhar. Eles permaneciam muitos anos longe de seus locais de origem e levavam consigo uma memória gustativa, produtos e formas de cozinha. Quando retornavam para casa, tinham aprendido muitas coisas, entre elas, novos modos de fazer a cozinha e novos tipos de alimentos. Os historiadores admitiram, portanto, que esse intercâmbio alimentar definiu o consumo a partir de Colombo, provocando uma verdadeira revolução alimentar. No entanto, o tema é muito mais complexo, uma vez que o choque entre o Velho e o Novo Mundo não teve as mesmas consequências alimentares para as duas sociedades. As transferências de produtos e hábitos operaram sobre bases culturais diversas, e a temporalidade foi distinta. Na América, como enfatizou Antonio Garrido Aranda, o impacto foi mais rápido e afetou de maneira desigual os corpos sociais [6]. Quanto à incorporação dos produtos das conquistas na dieta europeia, esta só se tornou importante após longo período de contato. Os casos da batata e do milho, no século XVIII, são exemplos disso.

Com relação ao abastecimento, cabe lembrar ainda a necessidade de enviar víveres aos fortes e demais edificações nas regiões de fronteira, aspecto indispensável para a defesa das possessões americanas. Além disso, antes da partida dos navios para o Reino, era preciso cuidar do embarque dos produtos a serem exportados e daqueles destinados à sobrevivência da tripulação ao longo da viagem. Sem falar, é claro, nos produtos encomendados por autoridades do governo e pela ucharia real, como, por exemplo, no século XVIII, o arroz, o chocolate ou as ervas aromáticas e medicinais, todos bastante desejados pelo mercado europeu.

Outro tipo de documentação importante para o estudo da alimentação são as atas das câmaras coloniais, pois trazem múltiplas informações sobre o abate de animais, o controle dos preços de gêneros de primeira necessidade, a carestia ou abundância de certos produtos, permitindo ao leitor identificar o que comiam os habitantes da América em diferentes momentos e contextos históricos.
No universo da vida doméstica, a alimentação destaca-se, ainda, não só na cozinha, mas também na botica, devido à sua importância na manutenção da saúde e no tratamento de doenças. Nesses dois domínios do conhecimento - culinária e medicina - os historiadores se interessam pelas receitas e modos de preparação dos alimentos, bem como por suas virtudes e propriedades gustativas ou terapêuticas. Uma mesma erva, por exemplo, poderia ser utilizada tanto como tempero de um prato, quanto na confecção de elixires ou emplastros por boticários, cirurgiões e curiosos.
Os cronistas e memorialistas da América, sejam espanhóis ou portugueses, deram especial atenção a todas essas questões ligadas à sobrevivência nas conquistas. Seus relatos são, ainda hoje, uma fonte excepcional para o estudo da alimentação e demais intercâmbios culturais entre o Novo e o Velho Mundo.

A história da dietética e das práticas alimentares na América portuguesa é, portanto, algo muito vasto e pouco desvendado pela historiografia brasileira. O Arquivo Nacional possui sob sua guarda diversos fundos documentais que representam um estímulo a novos estudos sobre essas temáticas. Uma amostra do que pode ser explorado encontra-se nas ementas apresentadas nesse sítio.

[1] Sobre a relação entre a história da alimentação e o movimento dos Annales, ver Maurice Aymard, Pour l'histoire de l'alimentation: quelques remarques de méthode, Annales - Économies, Sociétés, Civilisations, n. 2-3, 1975; Fernand Braudel, Retour aux enquêt, Annales - Économies, Sociétés, Civilisations, n. 1-3, p. 421-424, 1961.
[2] Sobre a questão, ver o balanço historiográfico de Ulpiano T. Bezerra de Meneses, A história da alimentação: balizas historiográficas, Anais do Museu Paulista - História e Cultura Material, São Paulo, v. 5, p. 10-11, jan.-dez. 1997.
[3] Capistrano de Abreu, Três séculos depois, in: Capítulos de história colonial, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; MEC, 1976, p. 189-213; Gilberto Freyre, Casa grande & senzala, 16. ed., Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1973, p. 40-44, 454-461; Caio Prado Junior, Formação do Brasil contemporâneo, 12. ed., São Paulo, Brasiliense, 1972, p. 163, 159-161; Sergio Buarque de Holanda, Monções, 1. ed., São Paulo, Alfa-Ômega, 1976, p. 111-113, e Caminhos e fronteiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 156, 185 (1944).
[4] Alguns estudos, porém, deram maior atenção às questões culturais, abordando inclusive a temática da alimentação. Ver, por exemplo, Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1822), São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978, p. 3-20; Evaldo Cabral de Mello, Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654, 2. ed., Rio de Janeiro, TopBooks, 1998, p. 269-271 (1975).
[5] A alimentação aparece como tema complementar em alguns estudos, como, por exemplo, os de Glória Kok, O Sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo, século XVIII, São Paulo, Hucitec, 2005, p. 76, e Pedro Puntoni, A Guerra dos Bárbaros, São Paulo, Hucitec, 1998, p. 210-223.
[6] Antonio Garrido Aranda, La revolución alimentaria del siglo XVI em América y Europa, in: Antropología y cocina: gastronomia de ida y vuelta, Jaén (Espanha), Dipuation de Jaén, 2005, p. 43-44.

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