Um sistema de governo para a América portuguesa
Em ofício de 6 de outubro de 1772 ao secretário de Estado Martinho de Melo e Castro, cerca de dois anos depois de assumir o vice-reinado, Lavradio fez considerações sobre os interesses gerais da América portuguesa, fundados na perspectiva mercantilista da colonização, e enunciou uma espécie de sistema que pretendia seguir em sua gestão. Suas principais idéias eram:
1ª) Que devia adotar-se um sistema para o governo do Brasil e para isso os diferentes capitães-generais deveriam comunicar todas as medidas que tomassem ao vice-rei do Estado, o qual devia ser o conservador do sistema;
2ª) Que devia promover-se a agricultura, mas de modo nenhum a indústria fabril para evitar toda a possibilidade e mesmo idéia de separação;
3ª) Que sendo conveniente o ter organizado os habitantes daquele Continente do Rio Grande de São Pedro, era necessário, contudo, corrigir o sistema dos terços e ordenanças, em conseqüência das inevitáveis vexações dos mestres de campo e capitães-mores;
4ª) Que o Brasil para ser útil a Portugal carecia de ser governado por homens muito probos, ilustrados e ativos.23
A julgar pertinente a interpretação que fez o biógrafo e descendente do marquês do Lavradio sobre o seu sistema de governo, nos quatro pontos acima citados há um sem-número de questões a aprofundar, o que infelizmente excederia os limites das notas aqui propostas. Em suma, ao se colocar na condição de "conservador do sistema" governativo da América portuguesa, Lavradio reivindicava para si a concentração do poder no espaço colonial, o que na prática era impossível. Interpretação consolidada na historiografia dá conta de que a autoridade do vice-rei, em tese o representante máximo do rei, esvaía-se facilmente à medida que as distâncias avançavam. Sua jurisdição não ia muito além das capitanias-gerais da Bahia (até 1763) e do Rio de Janeiro. Sobre essa realidade da administração colonial, afirmou A.J.R. Russell-Wood: "o raio de alcance do controle efetivo do vice-rei, do governador, dos magistrados, do fisco ou dos eclesiásticos já mostrava sinais de atenuação a menos de cem quilômetros de distância do assento da autoridade ... e sofria uma erosão muito rápida".24
Por outro lado, ao cogitar a centralização administrativa, o marquês do Lavradio tocava em apenas um dos muitos aspectos que ilustram a divergência entre as instruções emanadas da metrópole e a sua adequação à realidade colonial. Afinal, a prestação de contas ao vice-rei por parte dos capitães-generais estava prevista no Regimento de Roque da Costa Barreto, de 1677, cuja aplicação se estendeu pelo século XVIII. Uma das obrigações do governador-geral ou do vice-rei era "exigir a subordinação" que lhe era devida pelos "governadores e capitães-generais das várias capitanias", segundo Heloísa Bellotto que, no entanto, admitiu a inexistência disso na prática.25
Ademais, Lavradio não especificou quais as unidades cujos administradores deveriam se submeter ao seu mando, uma vez que do Rio de Janeiro, nos idos de 1770, controlava, por exemplo, as capitanias subalternas do Rio Grande de São Pedro e de Santa Catarina, não intervindo efetivamente nos negócios de São Paulo, Minas Gerais ou Bahia. Por sua vez, o capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, uma unidade administrativa independente do Estado do Brasil, era subordinado diretamente a Lisboa. Ainda assim, em momentos delicados, como será visto adiante, o vice-rei podia requisitar, amparado em ordens régias, socorro das capitanias vizinhas.26 De resto, havia franca possibilidade de comunicação direta dos seus governantes com o Reino.
O segundo tópico do "sistema de governo" de Lavradio consistia em um dos pontos mais significativos da política metropolitana: a promoção da agricultura com vistas ao incremento do comércio. A crise na atividade mineradora tornou-se uma realidade cada vez mais nítida na segunda metade do século XVIII, demandando esforços de todos os administradores coloniais da América portuguesa, no sentido de dinamizar culturas já bem conhecidas, a exemplo do anil, do arroz e do linho-cânhamo, e de experimentar novos ramos da produção natural, como o plantio das amoreiras para a criação do bicho-da-seda, e o cultivo do linho-guaxima.
O modelo explicativo clássico do "sentido" da colonização, cunhado por Caio Prado Júnior, expressa que a circulação de mercadorias da Colônia para a Metrópole, fundamento do Pacto Colonial, permitiria o acúmulo de riquezas na segunda.27 Isso justifica a idéia de Lavradio, segundo a qual a agricultura deveria ser desenvolvida na América portuguesa com o propósito de manter vivo o comércio colonial e, por conseguinte, reanimar a economia do Reino.
Esta dinâmica estava no centro da política mercantilista revigorada pelo reformismo pombalino de meados do Setecentos.28 De outro modo, segundo Joel Serrão, aludindo à importância que a América portuguesa alcançara no seio do império ultramarino no século XVIII, "no Brasil as minas de ouro tendiam para a exaustão, o que tornava necessário rever e recondicionar uma nova política geral para com a grande colônia sul-americana, sem a qual Portugal não fazia sentido no mundo de então".29
Mas o exclusivo metropolitano conviveu com certa flexibilidade; necessária para o sucesso de algumas empreitadas, demonstrando a necessidade de acomodação entre a política formulada no Reino e a realidade colonial. Em ofício ao secretário de Estado Martinho de Melo e Castro, de 9 de maio de 1776, Lavradio esclareceu o sistema que empregava para animar a produção do anil:
... o anil, como eles os produtores lhe vão vendo a utilidade e eu os não tenho deixado descansar com as minhas impertinências, vai tendo um aumento formidável. Eu tenho fechado os olhos a deixar vender algum por fora, às escondidas. Esta liberdade que tem tido, tem feito que já hoje não haja ninguém que não plante e faça o anil com muito gosto, conhecendo os interesses que dele lhe resulta.30
No que diz respeito às manufaturas, era necessário equacionar os interesses metropolitanos e coloniais. A iniciativa de fabricar queijos e manteiga, por exemplo, foi bem vista em Lisboa pelo secretário Martinho de Melo e Castro, como deixou claro em carta ao marquês do Lavradio, de 20 de novembro de 1772:
... ainda se não puderam descobrir os sujeitos que V. Ex.ª pede para ensinarem a fazer queijos e manteiga; mas fica-se fazendo a diligência .... A manteiga e queijos, porém, que V. Ex.ª mandou, ainda que não são sic os mais perfeitos, não deixam de ser contudo suficientemente bons, e creio que os de Irlanda não chegam aí melhores. Estes objetos são importantíssimos e dignos de V. Ex.ª animar ....31
As experiências com o linho-guaxima, por outro lado, esbarraram na falta de "proteção" da Coroa, em função de interesses comerciais radicados na metrópole. Foi o que ocorreu com a iniciativa do holandês John Hoppman, que além do café ensaiou o beneficiamento do linho-guaxima em sua chácara no Rio de Janeiro, apoiado por Lavradio. O produto, como pretendia o vice-rei, serviria à fabricação de cordoaria para as embarcações, mas, além de ser supostamente menos resistente, entrou em concorrência com o linho-cânhamo, conforme deixou entrever Martinho de Melo e Castro:
Recebi as cartas que V. Ex.ª me dirigiu, e as amostras da erva que me remeteu e mandando examinar na Cordoaria do Arsenal a força da mesma erva depois de fabricada, à vista da que tem o linho cânhamo de riga ... de tudo verá V. Ex.ª que a dita erva pela sua pouca força não poderá fazer um objeto de comércio, como, porém, é constante que o linho-cânhamo produz aí perfeitamente bem, tenho mandado vir não só das províncias do norte deste Reino, mas da República de Veneza uma boa porção de semente .... E nesta certeza pode V. Ex.ª mandar examinar os sítios mais próprios em que semear o referido linho-cânhamo ....32
No ofício do secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos ficam evidentes certas restrições às manufaturas coloniais, de acordo com as conveniências da metrópole. O mesmo Martinho de Melo e Castro que incentivou Lavradio quanto à fabricação de queijos e manteiga, demonstrou que os principais interesses na produção de cordoaria a partir do linho-cânhamo - cujas sementes também vinham do Reino ou de Veneza via Portugal - não deveriam estar plenamente radicados na América, mas na metrópole.
A resposta do secretário, por sua vez, reiterava uma instrução de seu antecessor, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que em 1769 enviou ao marquês do Lavradio a cópia de um relatório intitulado "Condições para estabelecer a sementeira e fábrica do linho cânhamo", de Antônio Gonçalves Pereira de Faria, previamente apresentado ao rei d. José I. Mendonça Furtado ordenou ainda que o vice-rei examinasse o documento e fizesse os preparativos necessários para o estabelecimento da dita cultura, não sem antes manifestar parecer sobre a mesma ao rei.33 Diante disso, fica a pergunta: estaria Lavradio insistindo em dinamizar outra cultura - a do linho-guaxima - enquanto a metrópole já havia indicado-lhe outra direção?
Um dado que pode reforçar a política seguida na Corte é fornecido por Valentim Alexandre. No cômputo das mercadorias portuguesas e de outros países exportadas para os domínios americanos, o linho figurava entre os produtos resultantes do desenvolvimento de uma indústria rural em Portugal. Teve grande importância no processo de industrialização européia no século XVIII, sendo reexportado para a América via Lisboa, assim como tecidos de Flandres, da Inglaterra, da Alemanha, e os portugueses, estes últimos escoados pelo Porto.34
As discordâncias em relação ao desenvolvimento de manufaturas também se manifestaram no seio da Colônia. Lavradio e d. Antônio de Noronha, governador de Minas Gerais, divergiram acerca da produção têxtil na capitania, que segundo apregoavam ao vice-rei os comerciantes do Rio de Janeiro, seria nociva aos seus negócios. O marquês mostrava-se favorável à comunidade mercantil e, portanto, contrário à proteção que d. Antônio dava às manufaturas mineiras. Mas o militar de gênio forte, como ressaltou Laura de Mello e Souza, não se intimidou ante as objeções de Lavradio, abertamente favorável ao desenvolvimento do potencial agrícola da Colônia.35 De todo modo, em 1785, um conhecido alvará régio impôs sérias restrições à produção manufatureira colonial.36
É importante realçar que paralelamente ao debate sobre a existência de manufaturas na América portuguesa, concorrentes ou não com as da metrópole, um dos traços mais acentuados da ação administrativa de Lavradio foi a criação de um espaço destinado à pesquisa de novas culturas: a Academia Científica do Rio de Janeiro. Entre 1772 e 1779, período em que o marquês permaneceu no cargo de vice-rei, a agremiação colocada sob a proteção do marquês de Pombal desenvolveu suas atividades científicas nas dependências do palácio dos governadores, que servia de residência ao vice-rei.
Em carta ao marquês de Angeja, de 6 de março de 1772, Lavradio sintetizou o projeto: tratava-se de reunir médicos, cirurgiões, botânicos, farmacêuticos e alguns curiosos de toda capitania do Rio de Janeiro para formarem uma assembleia ou academia. Tal instituição seria importante para o desenvolvimento e melhor uso dos recursos naturais da Colônia, por meio da pesquisa sobre tudo o que fosse pertinente aos três reinos da natureza, vegetal, animal e mineral, com finalidade comercial. Meses depois, em outra carta ao marquês de Angeja, o vice-rei comentou sobre os poucos avanços da Academia, mas mostrou que a proposta poderia ser útil a Portugal por meio de um gesto de amizade comum em sua correspondência. De presente, enviou ao destinatário alguns exemplares de conchas de tatus, conchinhas e búzios, que algumas pessoas consideravam um remédio para "moléstias de pedra".37
Interlocutor privilegiado nos assuntos relativos à Academia, o marquês de Angeja teve a oportunidade de acompanhar de perto os progressos da agremiação. Às suas mãos chegaram não apenas espécimes da natureza brasílica, mas também reflexões acerca das experiências realizadas, como a dissertação sobre a cochonilha (inseto do qual era extraído um corante avermelhado) escrita por José Henriques Ferreira, médico formado na Universidade de Coimbra e sócio da Academia da Suécia. O trabalho narrava o descobrimento do inseto na América portuguesa, suas características e importância, e destacava a criação de uma academia de história natural e médica na cidade do Rio de Janeiro, sob o governo do marquês do Lavradio, na qual foram realizadas experiências sobre a cochonilha.38
Contudo, ao que parece, a primazia dos estudos e da proposição de medidas para incrementar as potencialidades coloniais devia pertencer a Portugal. No mesmo ano em que Lavradio se retirou para a Corte e a Academia Científica do Rio de Janeiro encerrou suas atividades, entrou em funcionamento em Lisboa a Academia Real das Ciências. Ainda assim, não se pode desprezar o papel exercido pela agremiação fundada no Estado do Brasil. Foi a primeira instituição no Império português destinada a realizar pesquisas e estudos sobre ciências naturais, física, química e agricultura.39
Nas últimas décadas do século XVIII este papel, em maior amplitude, seria desempenhado pela Academia Real das Ciências de Lisboa com seu projeto-síntese de elaborar uma história natural dos domínios portugueses. Mediante o apoio da Coroa, a ação enérgica de d. Rodrigo de Sousa Coutinho e os ideais do reformismo ilustrado, buscava-se reverter a situação crítica da economia lusa, agravada pela decadência da produção de ouro e de diamantes, por meio da exploração racional dos recursos naturais do espaço colonial.40
Pouco tempo depois da fundação, as atenções de Lavradio para as atividades da Academia Científica do Rio de Janeiro passaram a ser divididas com os preparativos para a guerra luso-espanhola no Sul. As investidas castelhanas na fronteira meridional desafiavam as autoridades portuguesas desde pelo menos o início dos anos de 1760, quando o Rio Grande de São Pedro e a Colônia do Sacramento foram tomados pelas tropas de d. Pedro de Cevallos, como reflexo da participação lusa na Guerra dos Sete Anos. Ao se colocar do lado dos ingleses contra a coligação franco-espanhola, Portugal sofreu invasões em seu território continental, bem como assistiu à penetração castelhana na mal definida fronteira meridional. A questão foi provisoriamente resolvida pelo Tratado de Paris (1763), pelo qual a Espanha restituiu aos portugueses a Colônia do Sacramento, mas manteve a ocupação do Rio Grande.41
Retomando brevemente a sucessão dos fatos que se desenrolaram no Sul nos anos que antecederam a administração de Lavradio e naqueles em que o vice-rei conduziu o esforço de retomada dos territórios ocupados, é consenso na historiografia que as investidas castelhanas e as disputas pela soberania nas terras sulinas entre as duas Coroas ibéricas, no século XVIII, remontavam desde pelo menos a metade da centúria. O marco inicial do litígio é comumente situado no ano em que d. João V ratificou "o último grande ato" de seu reinado, "o Tratado de Madri (1750), que substituindo todos os tratados anteriores, de Tordesilhas em 1494 a Utrecht em 1713, tentara delimitar as fronteiras das possessões espanholas e portuguesas na América, África e Ásia com base na ocupação efetiva".42
Pelo Tratado de Madri, Portugal cedia à Espanha a Colônia do Sacramento e em troca recebia o território dos Sete Povos das Missões. Em suma, a morosidade na demarcação do Tratado ocorreu pelas desconfianças de ambas as partes envolvidas no acordo, pelas divergências quanto aos marcos de fronteiras - uma vez que o princípio do uti possidetis não foi aceito sem resistências -, e pelas delongas no trabalho das comissões mistas de demarcação. Por essas e outras razões diplomáticas, o Tratado de Madri foi anulado e substituído em 1761 pelo de El Pardo, o qual também não teve efeito e acabou facilitando a invasão castelhana de 1762. O litígio se arrastou até 1777, quando por meio do Tratado de Santo Ildefonso Portugal e Espanha pretenderam, sem sucesso, resolver a questão.43
Diante disso, é possível perceber que Lavradio herdou de seus antecessores a difícil tarefa de organizar a defesa dos territórios meridionais, arregimentando tropas e promovendo simultaneamente a ocupação produtiva da região. Ainda que de forma pouco explícita, tais esforços estão relacionados ao terceiro tópico do "sistema de governo" do vice-rei: "que sendo conveniente o ter organizado os habitantes daquele Continente do Rio Grande de São Pedro, era necessário, contudo, corrigir o sistema dos terços e ordenanças, em conseqüência dos inevitáveis vexações dos mestres de campo e capitães-mores".
A fase mais aguda da guerra luso-espanhola começou a se esboçar por volta de 1774, com as ofensivas das tropas enviadas pelo vice-rei de Buenos Aires, d. Juan Jose de Vertiz y Salcedo. O Rio Grande só foi retomado em 1776, mas a Ilha de Santa Catarina, ocupada por Pedro de Cevallos em 1777, só foi retomada depois da assinatura do Tratado de Santo Ildefonso. Para dar combate aos espanhóis e obter o que Lavradio declarou em 1774 ao governador do Rio Grande, José Marcelino de Figueiredo, ou seja, que desejava a restituição do "crédito dos portugueses nessas partes",44 foi preciso contar com a colaboração, debaixo de ordens régias, de alguns governadores, como Martim Lopes Lobo de Saldanha, de São Paulo, d. Antônio de Noronha, de Minas, José César de Meneses, de Pernambuco, e Manuel da Cunha de Meneses, da Bahia.45
Tais articulações não passaram despercebidas pela historiografia. Em conferência proferida no final da década de 1960, Marcos Carneiro de Mendonça observou o panorama das capitanias na segunda metade do século XVIII: de Pernambuco para baixo, todos ou quase todos os governadores estiveram no comando militar ou pertenceram à alta oficialidade dos Regimentos que lutaram em Portugal durante a Campanha de 1762, sob as orientações e reformas promovidas pelo conde de Lippe. Para o historiador, a quase uniformidade das patentes militares dos titulares teria permitido a formação de uma espécie de comando superior ao encargo do marquês do Lavradio.46
Os motivos para a solicitação de apoio militar não eram poucos. Em carta a Martinho de Melo e Castro, de 13 de dezembro de 1773, antes do início da fase mais aguda dos conflitos, o vice-rei abordou as dificuldades de cumprir as ordens de socorrer a capitania do Rio Grande. Mencionou a falta de homens para aumentar as tropas dos Regimentos do Reino, já que muitos haviam fugido para o interior, temerosos de serem recrutados, além da falta de dinheiro e de munições. Mesmo assim, prontificou-se a socorrer o Rio Grande do Sul, sacrificando a Colônia do Sacramento, pois deveria manter homens no Rio de Janeiro.47
A d. Antônio de Noronha, Lavradio preveniu em relação a um suposto ataque dos espanhóis à América portuguesa, face às notícias da Corte de que os mesmos preparavam embarcações de guerra e munições para investir contra Marrocos. Acreditava-se, possivelmente, que se tratava de um ardil dos inimigos para desviar a atenção dos lusos e encontrar o Rio de Janeiro desguarnecido. Para evitar a suposta invasão, Lavradio ordenou aos governadores que aumentassem os contingentes militares das capitanias, incluindo o alistamento de negros escravos, dando em troca a alforria dos mesmos, como forma de aumentar o número de efetivos.48 A Manuel da Cunha de Meneses fora expedida meses antes uma extensa carta tratando do mesmo assunto: o aumento dos contingentes militares no Rio de Janeiro por meio do envio de tropas da Bahia.49
Mas não foi só com o recrutamento militar e o despacho de tropas que se planejou e executou a defesa do litoral americano e principalmente dos territórios meridionais. Nestes últimos, Lavradio incentivou o povoamento, o desenvolvimento da agricultura e da criação de gado, chamando os colonos à responsabilidade de defender as possessões de Sua Majestade como se protegessem suas próprias terras e famílias. Em articulação com os governos do Rio Grande e de Santa Catarina, foram incentivados os casamentos, o aldeamento de índios, o recrutamento de homens para a formação de terços de auxiliares e a distribuição de terras para a lavoura. Alguns desses propósitos aparecem na carta escrita a Francisco Antônio da Veiga Cabral da Câmara, governador de Santa Catarina, em junho de 1778:
... pelo que pertence à gente, julgo ser o primeiro e o mais essencial o promover V. S.ª o quanto lhe for possível os casamentos de todos os mancebos que estiverem em idade competente, com as moças que houver neste país .... A todos os que tomarem aquele estado ... não se consentirá que eles deixem de ter uma porção de terras que possam cultivar .... Todos eles serão obrigados a ter uma criação de gado, e seria excelente estabelecer-lhe o costume de criarem para a sua lavoura bestas cavalares, servindo-lhe o gado para adubarem as terras ....50
Em linhas gerais, a manutenção da soberania portuguesa sobre o Rio Grande e Santa Catarina dependia não apenas do envio constante de homens, armamentos, munições ou da construção e reparo de fortificações. As táticas e apetrechos bélicos, bem como as negociações diplomáticas foram indispensáveis, mas a defesa pela ocupação produtiva desempenhou papel fundamental na definição do domínio português sobre os territórios meridionais.
Toda a ação administrativa de Lavradio não estava orientada por princípios de governo estritamente pessoais, ainda que cada um dos agentes da colonização imprimisse sua marca individual na faina ultramarina. No período pombalino, como foi dito acima, e mesmo depois, continuou vigorando o Regimento de Roque da Costa Barreto. Outras máximas tornaram-se muito freqüentes na correspondência oficial trocada entre administradores coloniais e autoridades metropolitanas, configurando uma espécie de paradigma governativo: o bem comum, a utilidade ou a felicidade dos povos, a brandura, a justiça, dentre outras fórmulas discursivas evocadas para orientar os governadores e capitães-generais. Como Joaquim de Melo e Póvoas, do Maranhão, e Luís Pinto de Sousa Coutinho, de Mato Grosso.51
Outra máxima das mais freqüentes nas correspondências oficiais era a "limpeza de mãos", qualificativo que designava aqueles que desempenhavam as funções para as quais foram nomeados com probidade. Aliados a este atributo desejável dos administradores coloniais e demais oficiais régios estavam a clareza de idéias e a atividade. Em resumo, tais qualificativos denotavam o "zelo" pelo Real Serviço e remetem ao quarto tópico do "sistema de governo" de Lavradio: "que o Brasil para ser útil a Portugal carecia de ser governado por homens muito probos, ilustrados e ativos". De acordo com ele, deveriam ser evitados as parcialidades e os comportamentos omissos que impediam a promoção do bem público e da felicidade dos povos.
Um exemplo das posturas defendidas por Lavradio pode ser colhido no minucioso relatório que deixou ao seu sucessor, Luís de Vasconcelos e Sousa, ao final do vice-reinado:
... era necessário quanto eu pudesse acudir a erros tão consideráveis, de que seguiam muitas ... contendas que os povos tinham entre si, já fossem lavradores, já pessoas miseráveis, já negociantes ... e na minha presença ajustei a muitos; e deste modo ... procurei que todos vivessem em mais sossego, e deixassem de arruinar as suas casas; é certo que os ministros queixavam de serem muito menos as demandas ..., porém os povos respiravam mais, o comércio e a lavoura adiantaram-se e ainda se teriam adiantado mais, se os mesmos juízes ... me não tivessem inquietado ....52
As queixas pela diminuição das demandas e, consequentemente, dos emolumentos auferidos por oficiais da Justiça parecem não ter abalado a convicção de Lavradio, um nobre de linhagem cujos valores determinavam não apenas o zelo pelo Real Serviço, mas também por sua honra pessoal e familiar. O que não significa que todos os homens de sua condição, oriundos de antigas Casas nobiliárquicas, tenham sido personagens ilibados a figurar no cenário da distante América colonial, alguns caindo em desgraça. A historiografia, no entanto, admite que Lavradio não se prevaleceu do cargo para enriquecer.53 Teria seguido o caminho de outros que endividaram suas Casas, comprometendo seus bens e rendimentos para salvaguardar o decoro do Real Serviço.
Considerações finais
O que aqui se apresentou foi apenas um breve fragmento das ações e dos problemas enfrentados pelo segundo marquês do Lavradio no ultramar. Muito já foi dito sobre ele e muito ainda pode ser explorado, dadas as circunstâncias delicadas em que governou e os registros documentais à disposição do historiador. De volta a Portugal, depois de 11 anos de serviços, Lavradio foi recompensado com o governo militar da Torre de São Julião da Barra, os cargos de conselheiro da Guerra, de presidente do Desembargo do Paço, de inspetor-geral das tropas do Alentejo e Algarve, de vedor da rainha d. Maria I e com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.
É bom lembrar que a remuneração dos serviços prestados por um agente da colonização, vice-rei, governador, governador e capitão-general ou mesmo um oficial régio de alguma das inúmeras repartições da administração colonial não deve conduzir a generalizações. Nem sempre o bom governo foi premiado com a graça régia ou o mau governo punido à altura. Diversos fatores que extrapolavam o âmbito do governo ultramarino contribuíam para o acrescentamento ou mesmo o ostracismo de um indivíduo.
23 SÁ, José d'Almeida Correia de, op. cit., p. 43-44.
24 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Governantes e agentes. In: BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti (dir.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1998. v. 3. p. 171.
25 BELLOTTO, Heloísa Liberalli. O Estado português no Brasil: sistema administrativo e fiscal. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Nova história da expansão portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1986. v. 8. p. 276.
26 Sobre a relação do vice-rei com os governadores e capitães-generais, ver também ALDEN, Dauril, op. cit., p. 447-472.
27 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1957. p. 25. Tese tributária do modelo analítico lançado por Caio Prado Júnior consubstanciou-se no clássico de NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colônia: 1777-1808. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. Ver, sobretudo, o capítulo 2: "A crise do Antigo Sistema Colonial", p. 57-116.
28 Para a associação entre o reformismo ilustrado e o mercantilismo ver o estudo clássico de FALCON, Francisco. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.
29 SERRÃO, Joel. Repensar Pombal. In: SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (coord.). Pombal revisitado. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. v. 2. p. 356.
30 Biblioteca Nacional de Lisboa (doravante BNL). Seção de Reservados. Códice 10624, fls. 155-156.
31 Arquivo Nacional (doravante AN). Secretaria de Estado do Brasil. Códice 67, v. 4, fl. 233.
32 AN. Vice-reinado. Caixa 744, pct. 01.
33 AN. Fundo Marquês do Lavradio. RD 11.32 a RD 11.34 (microfilme 024.97).
34 ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Edições Afrontamento, 1993. p. 48.
35 SOUZA, Laura de Mello e. Os limites da dádiva: dom Antônio de Noronha. In: ______. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 368-383.
36 Sobre o tema da proibição das manufaturas ver o artigo clássico de NOVAIS, Fernando Antônio. A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica portuguesa do fim do século XVIII. Revista de História, São Paulo, n. 67, p. 145-166, 1966.
37 LAVRADIO, Marquês do, Cartas do Rio de Janeiro: 1769-1776, p. 96-97 e p. 110 (cartas 355 e 389).
38 AN. Fundo Marquês do Lavradio. RD 41.1 a RD 41.22 (microfilme 025.97).
39 Cf. SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portugal e o Brasil: a reorganização do império, 1750-1808. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: a América Latina colonial. São Paulo/Brasília: Edusp/Funag, 1997. v. 1. p. 506. Ver também DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 278, p. 112-115, 1969.
40 Sobre o amplo debate acerca da história natural no mundo luso-brasileiro ver HEYNEMANN, Cláudia Beatriz. As culturas do Brasil: história natural no Setecentos luso-brasileiro. São Paulo: Hucitec (no prelo). Ver também, por exemplo, MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Memórias, reformas e acadêmicos no Império luso-atlântico: domínio territorial, poder marítimo e política mercantilista. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 416, p. 13-66, jul./set. 2002.
41 ALMEIDA, Luís Ferrand de. Colônia do Sacramento. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Editorial Verbo, 1994.
42 Cf. SILVA, Andrée Mansuy-Diniz, op. cit., p. 480.
43 Uma abordagem sobre as relações entre Portugal e Espanha na época pode ser encontrada em KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento: relações luso-castelhanas na segunda metade do século XVIII. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 25, p. 91-112, 1999.
44 AN. Secretaria de Estado do Brasil. Códice 104, v. 1, fl. 21.
45 Ver, por exemplo, ALDEN, Dauril, op. cit., p. 139 e p. 453-454. SOUZA, Laura de Mello e. Os limites da dádiva: dom Antônio de Noronha, p. 354-355 e p. 368-369.
46 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Aspectos da legislação pombalina relativa ao Brasil. Rio de Janeiro: Gráfica Tupi, 1969. p. 16.
47 AN. Fundo Marquês do Lavradio. RD 5.1 a RD 5.2v (microfilme 024.97).
48 LAVRADIO, Marquês do, Cartas do Rio de Janeiro: 1769-1776, p. 160-161 (carta 535).
49 Ibidem, p. 150-152 (carta 510).
50 BNL. Seção de Reservados. Códice 10631, fl. s/n.
51 ALBUQUERQUE, Martim de. Para a história das idéias políticas em Portugal: uma carta do marquês de Pombal ao governador do Maranhão em 1761. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, 1968. Ver também BELLOTTO, Heloísa Liberalli, op. cit., p. 277.
52 Relatório do marquês do Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcelos e Souza, que o sucedeu no vice-reinado. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 4, p. 443, 1999.
53 Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 275-279.
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