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Vida Privada

Recolhimento de mulheres

Escrito por Super User | Publicado: Quarta, 31 de Janeiro de 2018, 18h57 | Última atualização em Sexta, 23 de Abril de 2021, 17h38

Oficio enviado ao conde de Aguiar informando sobre o processo de recolhimento de Fortunata Maria da Conceição. Tendo fugido do Recolhimento de Itaipu e buscando abrigo no Recolhimento do Parto, Fortunata Maria da Conceição estava movendo um processo de divórcio contra seu marido que a acusava de prostituição. Abordando temas referentes às relações familiares no Brasil colônia, este documento discute a questão do divórcio e da conduta feminina, enfocando comportamentos que atentavam contra a moral e os bons costumes do período.

 

Conjunto documental: Ministério dos Estrangeiros e da Guerra
Notação: 6J-78
Datas-limite: 1795-1811                           
Título do fundo ou coleção: Diversos GIFI
Código do fundo: OI
Argumento de pesquisa: família
Data do documento: 11 de julho de 1809
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

Leia esse documento na íntegra

 

"Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Conde de Aguiar

Por aviso que Vossa Excelência me expediu na data de 30 de Junho, manda o Príncipe Regente  Nosso Senhor que se informe com meu parecer sobre o requerimento incluso de Bernardo Antônio do Amaral, em que pede a Sua Alteza que faça recolher ao Recolhimento Itaipu[1], ou ao da Misericórdia[2] sua mulher Fortunata Maria da Conceição, que se acha depositada no Recolhimento do Parto[3] desta Corte tratando com ele causa de divórcio.

Esta mulher ou fosse por hora verdade minha procedido mal no Cantagalo, onde se casou com o suplente que era ali Meirinho[4] da Intendência, ou por que o marido assim o divulgasse, pediu com consentimento de seu pai que então era vivo, que se queria recolher em Itaipu, e o conseguiu, tudo de comum acordo com o suplente que deste modo encobriu a sua afronta.

Fugiu depois dali, e por fim fez-se depositar no recolhimento do Porto para propor a seu marido causa de divórcio[5], que ainda não está ultimada.

Na pendência desta causa, sendo Vice Rei deste estado o conde dos Arcos, procurou o suplente muda-la para Itaipu, e me lembro de que me mandou informar vosso sic requerimento, enquanto fundamento era o mesmo que agora da, de ter ela arte de sair fora e prostituir-se[6]ali mesmo, cobrindo o de frequentes afrontas, que com esta mudança procurava evitar. Não achei que isso fosse certo, e com o meu parecer se escusou a sua pretensão. Por me parecer que era isso um ardil complô. Suplente procurava arredá-la para mais longe, donde não podem tratar de sua causa.

O mesmo digo agora; Por que se a demanda não está finalizada e se ela está ali em depósito judicial, não se deve inovar este, bem que agora eu pelos muitos fatos saiba que dito Recolhimento está muito desacreditado, e que desgraçadamente podem ser verdadeiros os fatos de torpeza de que ela é arguida, praticado no mesmo Recolhimento.

Mas o de I(t)aipu se de clausura fraca e a prova seja a fuga que ela mesma dali fez, e o qual tem feito outras mulheres.

O da Misericórdia não deve ser emporcalhado com mulheres desta classe, sendo de recolhidas somente bem educadas, que ali estão a merecer casamentos e donde tem saído boas mães de família; e o meu parecer por tudo isto é, que se continue a conservar no Parto, mas que se mande recomendar ao Bispo Diocesano de cuja inspeção ele é, que vigia pelos abusos da sua clausura, quando ponha em melhor disciplina e que mesmo particularmente faça vigiar sobre a pessoa da mulher do suplente, pois que está ali em depósito, e nos depósitos deve haver sempre boa guarda.

Não serei de parecer da mudança por durar a causa do divórcio, e deve ela está perto de seus procuradores, a quem deve falar e dar informações, e para que se não diga, anuindo as instancias do marido, se lhe tirarão os meios, e se procurarão os dela decair da coisa. Isso é tudo quanto entendo.

Digníssimo G. N. Excelentíssima Rio, 11 de julho de 1809

Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Conde de Aguiar

Paulo Fernandes Vianna[7].”

 

[1] RECOLHIMENTO DE SANTA TERESA DE ITAIPU: fundado em 1764, em Niterói, a partir de uma capela erguida em 1721, tinha como objetivo abrigar mulheres que pretendiam seguir a vida religiosa, órfãs, casadas abandonadas, entre outras em situação vulnerável. A instituição servia, ainda, como forma de castigo para moças solteiras, que se insurgiam contra as determinações dos pais, principalmente por motivo de casamento. A internação no estabelecimento requeria o pagamento de um dote pela família e a aprovação da Corte. No início do século XIX, o Recolhimento deixa de funcionar. Hoje, em suas ruínas, funciona o Museu de Arqueologia de Itaipu.

[2] RECOLHIMENTO DA MISERICÓRDIA: fundado em 1739, o Recolhimento das Órfãs da Santa Casa surgiu a partir de doações feitas à Irmandade da Misericórdia do Rio de Janeiro, com o objetivo de amparar as órfãs carentes. Não custa lembrar que a Casa dos Expostos foi criada um ano antes, e as meninas órfãs depois de certa idade passaram a ser encaminhadas, quando não conseguissem adoção, para o recolhimento. Trata-se do primeiro estabelecimento leigo para jovens órfãs da cidade, visto que o Recolhimento do Parto iniciou suas atividades em 1754 e o de Santa Teresa de Itaipu em 1764 (o primeiro Recolhimento da Misericórdia do Brasil foi fundado na Bahia em 1716). Ao contrário destes últimos, o Recolhimento da Misericórdia não se destinava a abrigar mulheres arrependidas ou infratoras, funcionando, antes, como uma casa onde as jovens órfãs se preparavam para o matrimônio. Lá, além dos exercícios espirituais (orações e missas) as órfãs aprenderiam a cozer, bordar, fazer rendas, e outras atividades que as pudesse tornar boas esposas e mães. Para que conseguissem o almejado matrimônio, a Irmandade garantia inclusive um dote para as jovens. Esse dote era fundamental para garantir um casamento para as órfãs, sem isso elas não teriam como se manter e acabariam morrendo de fome ou prostituindo-se, sobretudo depois de 1785 quando os administradores do recolhimento instituíram uma regra que limitava a seis anos o período máximo de permanência na instituição. Essas instituições de assistência aos órfãos eram consideradas de grande importância na sociedade luso-brasileira pois garantiriam a ordem da sociedade e preservariam a moral cristã.

[3] RECOLHIMENTO DO PARTO: fundado por Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1719-17?), no Rio de Janeiro em 1754, ao lado da capela de Nossa Senhora do Parto, destinava-se a abrigar tanto as mulheres casadas abandonadas, quanto as moças solteiras castigadas pelos pais. Rosa Egipcíaca foi uma escrava, nativa da Costa da Mina, que chegou ao Rio de Janeiro com 6 anos de idade e aos 14 foi vendida a uma senhora de Minas Gerais. Nas terras do ouro, trabalhou prostituindo-se, até ser acometida por uma estranha enfermidade que a levou a largar o meretrício e adotar vida beata. Após sua conversão, passou a ter visões proféticas apocalípticas, se tornando visível, admirada e venerada. De volta ao Rio de Janeiro, agora liberta e sob a proteção dos franciscanos do Convento de Santo Antônio, Rosa era adorada como uma santa. Foi por inspiração sobrenatural que a “santa africana” fundou o Recolhimento do Parto, com o beneplácito do bispo D. Antônio do Desterro, onde abrigava mulheres enjeitadas pela sociedade, em sua maioria, negras e mulatas. Segundo as narrativas da época, o recolhimento logo tornou-se objeto de desafeto das mulheres, tendo em vista sua transformação em uma arma de disciplina usada pelos homens que desejavam livrar-se de suas esposas. Disse Joaquim Manoel de Macedo em Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro: “Se o piedoso e santo recolhimento abrisse as suas portas somente àquelas senhoras que voluntariamente fossem procurar o religioso retiro, não havia que dizer, ao menos naquele tempo. Se, além de recolhimento de velhas arrependidas, desvirtuado embora o pensamento que presidira à sua fundação, servisse para receber e educar meninas e jovens, havia muito que louvar, uma vez que a educação fosse ali bem dirigida. Mas o asilo que se levantara foi mais do que isso, foi uma terrível ameaça de pedra e cal, tornou-se em uma espécie de casa de correção feminina, em uma espécie de cadeia que fazia medo não só às más esposas como às esposas de maus maridos, e também às moças solteiras filhas de pais enfezados, cabeçudos e prepotentes.” Sua manutenção fazia-se por meio dos aluguéis das lojas anexadas a seu prédio e da contribuição das famílias de algumas moradoras. Rosa Egipcíaca foi a madre do Recolhimento, onde instalou-se um verdadeiro culto idolátrico à sua pessoa. Em 1763, após alguns desentendimentos com o clero, foi presa e acusada de heresia. Enviada à Lisboa para ser julgada pelo Tribunal do Santo Ofício, seu processo inquisitorial foi interrompido em 1765, não sendo identificada a pena aplicada. Acredita-se que tenha morrido no cárcere. O Recolhimento do Parto, continuaria a funcionar, mas na madrugada de 24 de agosto de 1789, sofreu um grande incêndio. Coube ao Mestre Valentim da Fonseca e Silva dar início à obra de recuperação, que começou um dia após o incêndio e foi concluída três meses depois. O Recolhimento funcionou neste novo prédio até 1812, quando foi transferido para o Largo da Misericórdia, em prédio onde funcionaria, depois, a Escola de Medicina.

[4] MEIRINHO: cargo criado em 1534, cuja nomeação cabia ao capitão donatário e fazia parte da estrutura judiciária do Império português. Sua principal atribuição era auxiliar o ouvidor ou juízes ordinários em suas funções. Atuavam como oficiais da justiça, fazendo diligências e prendendo suspeitos. Houve a nomeação de meirinhos em diversas funções dentro da estrutura administrativa da colônia, para auxiliar as cadeias, as companhias de ordenanças, a Casa da Relação do Brasil, as Alfândegas, o provedor das Minas, depois Intendente do Ouro, e até mesmo o provedor dos defuntos.

[5] DIVÓRCIO: separação entre casais realizada por meio de processo, necessitando de autorização eclesiástica para ser impetrado e julgado pelo vigário-geral no tribunal da diocese. No período colonial, o divórcio era concedido em casos de faltas graves, como o adultério, que comprometia a honra do cônjuge e da família. Após apresentação da queixa ao Juízo Eclesiástico, a mulher ficava “depositada” na casa de parentes, para onde levava seus objetos de uso pessoal, até o final do litígio. Segundo a Maria Beatriz Nizza, as mulheres também poderiam pedir o divórcio em casos como os de adultério. “Enquanto na Capitania de São Paulo as mulheres não encontravam qualquer dificuldade em iniciar uma ação de divórcio, saindo de casa para um "depósito" numa casa honrada, geralmente de parentes, onde aguardavam a sentença, que lhes era quase sempre favorável, na opulenta Capitania da Bahia eram frequentes os obstáculos às ações de divórcio intentadas pelas mulheres, pois as fortunas eram maiores e os maridos temiam a divisão dos bens entre os cônjuges separados por uma sentença do Tribunal Eclesiástico.” https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1763

[6] PROSTITUIR-SE: Nas sociedades primitivas, a ausência de obstáculos à sexualidade tornava desnecessária a configuração de qualquer forma de prostituição. Esta seria, portanto, constitutiva do processo de socialização das civilizações antigas, com o surgimento da propriedade privada e o estabelecimento da monogamia e da sociedade patriarcal, fundada na subordinação das mulheres, públicas ou privadas, pela família, respaldada na figura do homem. Foi nas civilizações avançadas da Antiguidade que a prostituição se desenvolveu sob a forma tipicamente comercializada. No Brasil, a prática foi uma constante no período colonial. As primeiras prostitutas desembarcaram na América portuguesa ainda no primeiro século da colonização, estimuladas pelo Coroa portuguesa, que buscava, com a vinda de mulheres brancas, barrar a crescente mestiçagem entre homens brancos e indígenas. Prática tolerada na sociedade colonial, foram úteis para a valorização e consolidação do seu oposto: as mulheres “puras” ditas moças de família. Tornou-se uma forma de trabalho tanto para as mulheres que procuravam garantir sua sobrevivência, quanto para os senhores de escravos que exploravam sexualmente as cativas. O ato de prostituir-se não era considerado uma atividade criminosa no Brasil colonial, no entanto, alguns preceitos básicos deveriam ser respeitados, como não manter relações com outras mulheres ou parentes, não induzir que uma filha também se prostituísse e, ainda, não abandonar o caráter esporádico das relações, evitando gerar uma acusação de concubinato. As prostitutas, circulando livremente pelos logradouros e recebendo homens em suas casas, viviam uma realidade diretamente oposta à das mulheres ditas honradas, que aguardavam pelo casamento.

[7] VIANA, PAULO FERNANDES (1757-1821): Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

 

Sugestões de uso em sala de aula:

Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
- No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.


Ao tratar dos seguintes conteúdos:

- Práticas e costumes coloniais
- A manutenção do sistema colonial
- Estrutura administrativa colonial
- Brasil colonial: sociedade, delitos e transgressões

 

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