Ofício do governador da capitania de Mato Grosso, Francisco de Paula Maggozzi Tavares de Carvalho, a Tomás Antônio de Vilanova Portugal, informando a respeito da bandeira realizada pelo padre Francisco Lopes Sá, cujo objetivo era seguir para a Serra dos Martírios em busca de ouro. Baseando-se no relato feito por um dos membros da bandeira, o governador informou sobre o encontro hostil dos bandeirantes com os índios tapanhunas, bem como sobre os objetos encontrados na aldeia dessa tribo. Este documento também relata a curiosa relação entre os índios hipiacazes e o padre, os quais parecem amar o padre e reconhecer a imagem sacra como seu Deus. O documento é relevante para se conhecer o papel desempenhado pelos sacerdotes junto aos indígenas, além de revelar a visão que se construía sobre essa cultura.
Conjunto documental: Coleção de memórias e outros documentos sobre vários objetos.
Notação: Códice 807, vol. 11
Datas – limite: 1768-1822
Título do fundo: Diversos códices - SDH
Código do fundo: NP
Argumento de pesquisa: índios, aldeamentos
Data do documento: 18 de dezembro de 1820
Local: Quartel General de Cuiabá
Folha (s): 65 a 66
“Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor.
Pela carta inclusa, que tenho a honra de levar à presença de V. Excelência e que me remeteu o padre Lopes, verá V. Excelência o acontecimento, que teve com os índios Tapanhonas, por cujo motivo retrocedeu, e tentou ir ao Juruína em busca da prata; porém um homem, que foi na mesma Bandeira[1], e que veio aqui falar-me assegura, serem decerto os Martírios, naquele sítio; não só pelas grandes formações que viram, como também porque em onze bateadas, que deram em um pequeno riacho, a que puseram o nome de São João, tiraram quatro oitavas de ouro; porém ele diz, que o padre não quisera ficar ali, por se temer dos índios Tapanhonas, porque fazendo-lhe todos uma proposta, para passarem as águas naquele lugar, por ser saudável, e estarem muito perto da Serra dos Martírios, não quisera ceder, por maneira alguma; porque mandando ele uma porção de gente a uma aldeia dos Tapanhonas com foices e machados, para os brindar, e também com algumas miçangas, que daqui se lhe haviam mandado, não encontraram na dita aldeia senão mulheres, as quais fugiram imediatamente que os viram; e eles vendo, que elas se retiravam, deixaram dependurados os donativos que levarão, para lhes fazer ver que iam de paz e não para os ofender, porém isso de nada serviu, porque no outro dia apareceram mais de quinhentos e muito bem armados, todos cobertos de penas magníficas, homens de grande estatura, muito bem feitos e brancos (isto mesmo condiz com a informação, que havíamos tido dos índios Hipiacazes e pensando eles, que vinham agradecer o donativo, foi pelo contrário, porque imediatamente fizeram um grande círculo e entraram a disparar flechas, chegando a distância dela passos, pelo que se viram obrigados a pegar nas armas, e fazer-lhes algum fogo, em que morrerão alguns índios; e pelo muito que se aproximavam vieram no conhecimento que eles não conheciam ainda armas de fogo.
Encontraram na dita aldeia muitas redes, magnificamente tecidas, com enfeites de diferentes cores, e muito finas; um Pagol, que pelo menos teria quatrocentos carros de milho[2], um grande mandiocal[3], muitos algodoais[4], e uma plantação de milho de mais de doze alqueires; e asseguram o mesmo homem, que veio da tal Bandeira, que serão precisas 100 armas de fogo, para se poder concluir aquele descoberto, pela muita gentilidade, que há por aqueles rios; e que sem dúvida neles se encerram grandes tesouros; pois que em um pequeno buraco, que fizeram, acharam cinco pedras, sendo a maior de vintém. Eu estou esperando as últimas notícias do padre Lopes, e do seu resultado, terei a honra de participar a V. Excelência. Segura-me mais o dito homem, que os índios Hipiacazes só lhes falta trazerem o padre ao colo, que o amam e respeitam no último ponto, e que um pequeno oratório, que levara o padre com uma imagem; os índios senão tiram do pé dele, a beijarem-no, dizendo que está ali pajé, que assim intitulam eles a deus; e aqui verá V. Excelência quão necessários eram bons sacerdotes, para a cultura destes índios, que se acham com os ânimos dispostos, que são de uma índole bela, como já disse a V. Excelência, e que esta nação tem uns poucos de milhares de índios, que podem vir a ser muito proveitosos para agricultura e povoação desta província. Deus guarde a V. Excelência. Quartel General de Cuiabá[5], 18 de Dezembro de 1820. Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Thomaz Antonio de Vilanova Portugal[6]. Francisco de Paula Maggozzi Tavares de Carvalho.”
[1]BANDEIRAS: expedições armadas organizadas por paulistas da capitania de São Vicente, primeiramente para combater estrangeiros e indígenas; mais tarde se dedicaram ao apresamento e cativeiro de índios e a busca de minas de ouro e pedras preciosas. Valiam-se da extensa rede hidrográfica partindo do Tietê, Pinheiros, Cotia, Piracicaba para alcançar a bacia do Prata, Parnaíba e São Francisco. As bandeiras eram compostas por bandos imensos de mamelucos e seus cativos que por meses e até anos se deslocavam a pé ou a remo; acampavam para plantar e colher roças com que se supriam de mantimentos para prosseguir viagem sertão adentro, através de matas e de campos naturais, procurando aldeias indígenas ou missões de índios capturáveis. Essas expedições tiveram um impacto forte sobre as populações nativas, provocando o despovoamento de vastas regiões no interior do continente em consequência de contaminação por doenças ou deslocamento dos cativos para os povoados portugueses. Outro desdobramento dessas iniciativas foi a ampliação dos territórios sob o domínio da Coroa portuguesa, transpondo os limites territoriais portugueses na América definidos pelo Tratado de Tordesilhas e, obrigando Espanha e Portugal a renegociarem suas possessões no Novo Mundo. As bandeiras percorreram todas as regiões do extremo sul à Amazônia e do litoral leste e nordeste ao extremo oeste do país. No começo do século XVII, no vale do rio Paraná e de seus afluentes os bandeirantes penetraram nas reduções jesuíticas e nas áreas de ocupação espanhola do Guairá, do Paraguai e do Uruguai onde capturaram das dezenas de milhares de índios sedentarizados nas missões do Guaíra, Itatim e Tapes. Durante um século e meio, os paulistas se fizeram cativadores de índios, primeiro, para serem os braços e as pernas do trabalho de suas vilas e seus sítios, e como mercadoria para venda. Desse modo despovoaram as aldeias dos grupos indígenas lavradores em imensas áreas, indo buscá-los a milhares de quilômetros terra adentro. Frequentemente, quando a população nativa disponível para o trabalho se tornava escassa, bandeiras eram organizadas com a finalidade de tomar novos cativos, contando com a anuência ou mesmo a participação ativa de autoridades régias, que simulavam as condições de guerra justa impostas pela legislação em vigor para escravizar índios para as lavouras coloniais. Quando da abertura de uma nova zona os índios apresentavam resistência maior ou quando estalava uma rebelião escrava ou ainda quando um grupo negro se insurgia implantando um quilombo, apelava-se às bandeiras. A de Domingos Jorge Velho foi uma das mais conhecidas com essa função repressora, tendo sido contratada para destruir o quilombo de Palmares e liquidar a resistência dos índios Cariris no Nordeste (1685-1713), na chamada Guerra dos Bárbaros.
[2]MILHO: alimento originário do continente americano, o milho foi, e ainda é, a base alimentar de muitos povos do continente. Existem registros de seu cultivo que datam de cerca de 7000 anos no México. Apresentado aos europeus no século XVI, o milho, junto a outros produtos como a mandioca e, posteriormente, a aguardente, tornaram-se os principais alimentos da cultura de subsistência do Brasil colonial. Cristóvão Colombo foi o responsável por levar o cereal à Europa, que logo ganharia a aceitação da população pobre de países como Itália e França. Tendo sido empregado como ração animal, viria a despertar certo preconceito entre os mais abastados. Os portugueses, que também observaram o consumo do milho entre os nativos de sua colônia americana tão logo de sua chegada, não demorariam para aproveitar todas as formas de uso do cereal, como alimento para consumo próprio, até a fabricação de óleo, farinha, bebidas e ração animal. Em tempo, levariam seu cultivo para outras colônias na África e Ásia, e a partir de então, o milho tornou-se um dos mais importantes alimentos em todos os continentes.
[3]FARINHA: preparada a partir de uma raiz tropical conhecida como mandioca ou aipim, que pertence a uma única espécie, a Manihot esculenta, e apresenta centenas de variedades. A maioria é venenosa, pois contém ácido cianídrico (HCN). A cultura da mandioca era bastante comum entre as populações indígenas, quando os portugueses aqui chegaram. A produção da farinha entre os índios é um trabalho tradicionalmente realizado pelas mulheres que processam as raízes venenosas para eliminar o ácido cianídrico, utilizando o tipiti. Este instrumento consiste num cesto cilíndrico extensível, com uma abertura na parte superior, na qual se coloca a massa de mandioca amolecida. Nas extremidades do tipiti existem alças que permitem fazer sua torção para se extrair a água combinada ao HCN. Livre da água e do veneno, essa massa era colocada em panelas ou frigideiras de barro para secar e, só depois, era ralada para se obter a farinha, que podia apresentar uma consistência muito dura e seca, usada como suprimento alimentar nas expedições guerreiras, ou transformar-se em um polvilho branco, usado para fazer os beijus de tapioca. A mandioca era também a base do cauim, bebida pelos índios durante três dias antes dos rituais do canibalismo, levando à condenação de seu consumo entre os cristãos. Apenas algumas variedades podem ser aproveitadas após o simples cozimento: a mandioca doce ou aipim (Rio de Janeiro) também denominada macaxeira (Nordeste). No século XVI, os portugueses encontraram a mandioca domesticada pelos indígenas, adotaram suas técnicas de plantio e beneficiamento e foram os responsáveis por sua difusão na África e demais domínios. Chamada “pão dos trópicos” pelo padre José de Anchieta, substituiu por muito tempo o trigo no cotidiano dos colonos e estava entre os mais baratos dos produtos alimentícios. Além de ser uma planta resistente, era um alimento versátil, podendo ser consumido em forma de pão, farinha, ou ainda cozido, assado ou como pudim. A farinha de mandioca era consumida diariamente pelos habitantes da colônia em todas as regiões, acompanhando a mesa dos ricos ou a modesta refeição dos pequenos proprietários, misturadas a caldos ou ao feijão, até ser o alimento principal dos escravos, que nas fazendas contavam com alguns punhados de farinha seca, além de bananas, laranjas e eventualmente pequenas porções de toucinho e feijão.
[4]ALGODÃO: diversas espécies nativas de algodão podiam ser encontradas no Brasil desde os primeiros anos de colonização. A chegada das primeiras técnicas de fiação e tecelagem com a fibra algodoeira, no entanto, datam do século XVII, quando as roupas de algodão passaram a ser utilizadas para a vestimenta dos escravos nos meses mais quentes. A partir da segunda metade do século XVIII, a crescente demanda pelo consumo de algodão pelo Império britânico forçou a expansão do cultivo e a fabricação de fios no Brasil. Esse processo provocou uma segunda onda de interiorização da produção mercantil para exportação, isso porque o plantio do algodão é mais propício em clima seco, com chuvas regulares, ou seja, em áreas afastadas do litoral. Foi no Maranhão, através dos incentivos criados pela Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, que a produção algodoeira obteve crescimento mais intenso e longevo, perdurando até meados do século XIX. No Estado do Grão-Pará e Maranhão, serviu ainda ao pagamento dos funcionários régios e às transações comerciais (na forma de novelos ou de peças de pano) até 1749, quando foi introduzida a moeda metálica naquela região. No Oitocentos, apesar da onda de produção crescente, o baixo preço e a qualidade superior do algodão norte-americano terminaram por suplantar o produto brasileiro nos mercados internacionais.
[5]CUIABÁ: ao tempo da passagem da Viagem Filosófica, a capitania de Mato Grosso e Cuiabá, na avaliação dos demarcadores de limites portugueses, era uma das mais importantes de todo o Brasil, tanto pela sua extensão e pelas sabidas, mas ainda intactas riquezas, que guardam os seus vastíssimos sertões, como por ser fronteira ao vasto, populoso e rico Peru. Manoel de Campos Bicudo foi um bandeirante pioneiro na penetração do oeste brasileiro, no início do século XVII. Com o seu filho Antônio Pires de Campos, foi o primeiro bandeirante a atingir a região da atual cidade de Cuiabá, entre 1673 a 1682, fundando o primeiro povoado batizado de São Gonçalo Beira Rio, onde o rio Coxipó deságua no rio Cuiabá. Mato Grosso teve seu espaço colonizado na primeira metade do século XVIII, sendo o arraial e depois Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (atual cidade de Cuiabá) o ponto mais avançado até 1734, quando foram descobertas as minas na região do Guaporé. Essa vila teve sua origem com a descoberta do ouro nas lavras do Coxipó-Mirim, em 1719, tendo à frente de tal investida paulistas e reinóis, com destaque para a bandeira do sorocabano Pascoal Moreira Cabral. No ano de 1727 o arraial do Senhor Bom Jesus do Cuiabá foi elevado à condição de vila e, nesse momento, pertencia à jurisdição da capitania de São Paulo. Embora tivesse uma vasta extensão territorial que totalizasse 48 mil léguas, a capitania de Mato Grosso era constituída por apenas dois distritos, o do Cuiabá e o do Mato Grosso, e suas respectivas vilas: Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727) e Vila Bela da Santíssima Trindade (1752), esta última fundada para ser sede de governo. Cuiabá foi elevada à condição de cidade em 17 de setembro de 1818, tornando-se então a capital da província de Mato Grosso em 28 de agosto de 1835.
[6]PORTUGAL, TOMÁS ANTONIO DE VILA NOVA (1755-1839): bacharel em leis pela Universidade de Coimbra, foi desembargador do Paço, chanceler-mor do Reino, ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino e dos Negócios Estrangeiros. Figura de relevo no cenário político luso-brasileiro, destacou-se por sua participação como autor intelectual da elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves em 1815. Próximo a d. João, Vila Nova acumulou, em caráter ordinário e efetivo, vários cargos importantes. Foi ministro do Reino, do Erário Régio e dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, entre 1818 e 1820. Favorável aos ideais absolutistas, defendia os valores e fórmulas do Antigo Regime e a permanência da corte no Brasil, longe das ideias liberais que assolavam a Europa. Sem êxito em seu propósito, retornou a Portugal junto com a família real em 1821.
Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- A expansão territorial brasileira
- A organização administrativa do Brasil colonial
- As relações sociais de dominação na América Portuguesa
- Produtos coloniais
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